18 abril 2011

as minhas vacas, ou uma conversa de merda

Depois de almoço e durante um par de horas, na taberna, agora café do Lexinho, estive a jogar à Blota – jogo de cartas consignado a duas ou três aldeias e que um dia eu ainda hei-de trabalhar, depois disso e enquanto acabava a última Superbock, estive à conversa com alguns conterrâneos mais velhos. É sempre um prazer ouvir esta gente, as suas histórias, as suas aventuras, as suas vidas, as suas mágoas, enfim, as suas memórias. Falava-se de vacas e outros gados e do seu progressivo desaparecimento da paisagem da aldeia. Outrora foram às centenas, depois às dezenas e por fim, antes do seu total desaparecimento, apenas algumas unidades. Hoje não existe uma única vaca em toda a aldeia. Esta gente fala-me com notória nostalgia e saudade desse tempo, em que a aldeia tinha mais animais e, também, mais gente. Eles bem sabem que a vida era dura e mais difícil do que a de hoje, mas percebo-lhes a preferência por esse outro tempo. A propósito dessa convivência diária com os vários gados, recorda-se a imundice permanente das bosteiras, especialmente no Inverno, nas ruas e canelhas da aldeia – parece que estou a sentir o cheiro intenso das bostas de vaca a fermentarem no calor do pino do Verão, ou a ver-me, no Inverno, a caminhar pela aldeia, saltitando nas pontas dos pés, para evitar a merdice lamacenta. Relembra-se também a importância que tinham essas bosteiras para algumas das actividades agrícolas, tais como estrumar as terras e malhar o pão -nas eiras onde se malhava o trigo e o centeio. Por essas alturas, os mais velhos mandavam os miúdos, munidos com pás e carretas, procurarem pela aldeia as bosteiras frescas (recém-defecadas), recolherem-nas e trazerem-nas para as eiras, onde eram espalhadas, de forma a forrar o chão. Deixava-se secar e então depois podiam os homens malhar as espigas de cereal. Os grãos ficavam presos na bosta, os cuanhos e as palhas esvoaçavam, depois bastava varrer… Por fim, demos por nós a recordar alguns dos nomes dados às vacas. Não havia uma vaca que não tivesse um nome próprio. Um e outro iam recordando os nomes que, ao longo da vida, foram dando aos seus animais e o que é certo é que esse nome permitiu-lhes guardar na memória algumas das características desses animais. A atribuição de um nome a uma vaca serviria não só para as distinguir, como também para o próprio diálogo entre o lavrador e as suas vacas. Dizem-me que elas reconheciam o seu nome e respondiam a esse estímulo. A verdade é que a lista de nomes possíveis é imensa e a atribuição era sempre feita enquanto vitelas, sendo da exclusiva responsabilidade dos seus donos. Pontualmente, eram as crianças dessa casa quem escolhia o nome dos seus animais. Quando havia a compra ou venda de vitelas ou de vacas, uma das preocupações era conhecer e manter o nome que o anterior dono atribuia a esse animal. A escolha do nome obedecia em muitos casos a características físicas (ruiva, clara, amarela, morena, menina, roliça), ou temperamentais (castiça, malandra) do animal em questão, noutros casos a escolha era feita por relação com a época do ano em que nasceram (cereja, laranja, castanha), noutros casos ainda acontecia dar-se o mesmo nome da progenitora, ou de uma outra vaca de boa memória que esse lavrador tenha tido. Convém recordar que o sustento de cada casa, de cada família, dependia fortemente da sorte e saúde dos animais de trabalho. Normalmente, na mesma casa não havia vacas com os mesmos nomes. Este exercício de memória realizado por estes lavradores, traz-me à memória alguns momentos da minha infância, em que também eu convivia com esses animais e conhecia pelo nome as vacas da família. Momentos inesquecíveis de “ir” com as vacas para o lameiro, ou conduzir um carro-de-bois, ficarão registados para sempre. Agora que penso nisso, recordo com especial carinho a Cereja, uma vaca corpulenta, escura e temperamental, mas muito trabalhadora. Aproveitando o bom tempo que teremos pela frente, aqui está uma imaterialidade engraçada que irei estudar com mais atenção e trabalhar com cuidado redobrado, no meu futuro próximo. Boa.
(Ao alto, um belo par de exemplares da raça mirandesa, a trabalhar algures no Parque Natural de Montesinho.)

1 comentário:

Koky disse...

Pois eu se tivesse uma vaca chamava-lhe Vaca. E ela nunca me havia de levar a mal quando dissesse: "Ó minha Vaca!"; " Anda cá Vaca!"; "Ah! Grande Vaca!";