19 julho 2021

ilhíada, ou as ilhas do Porto em poesia


Leitura de cabeceira destas últimas noites, este novo livro de Alberto Pimenta fala-nos das ilhas da cidade do Porto, não de todas mas de 24 núcleos espalhados pela cidade e que ele, o autor, conheceu e/ou conhece. Tal como reconhece no "Átrio" deste livro, as ilhas são um tema bizarro... se para ele isto é poesia, o cordão do sapato serve perfeitamente para fita do cabelo (2021:5).

As ilhas em que se habita, como são as da cidade do Porto, não são um tema bizarro (...); percebo só que a destruição das ilhas em favor de asilos e guettos, e a construção de torres, onde os moradores dos vários andares se incomodam uns com os outros com ruídos e outra música, e sujam os de baixo com restos não só de cigarros (...); e o que as ilhas ansiavam, e por isso foram feitas, convivência fechada aos pares de botas que atacam; para isso eles mesmos com tábuas e pedra as ergueram, saber feito de experiência, sem luxo nem ornatos feitos para ficarem na história! (...) Sim, conheci muitas ilhas por dentro, até por dentro das casas; doutras, mesmo com a entrada sempre aberta, sei aquele pouco que se vê de fora; o que acontece é que não há talvez olhos que vejam igual, até os nascidos e criados lá não vêem igual, e ainda bem; (...) eu nalguns casos até fiquei a saber pedaços da vida de um ou dois moradores das ilhas, no total foram duas dúzias, vinte e quatro é a forma que se usa, que duma ou doutra maneira vi ou entrevi, e andei até por lá. (in Átrio, 5-10)

...só oito
em S. Brás a que havia, e logo ao começo,
ao fim de umas dez ou doze casas, era das
que não tinham portas para a rua, e dentro
as portas eram raras; mas não era ousadia,
que ousadia? à polícia assim nem apetecia
entrar, para quê? ali não entrava ninguém,
nem mesmo clientes do sapateiro; esses,
cá de fora assobiavam, ele à porta de casa
largava as solas que estava a compor, ia a
esfregar as mãos entre as nódoas de graxa
do seu eternamente usado pano de lustro:
ia falar na rua com os que o procuravam!
não era medo de nada, era o à-vontade da rua,
e apesar de estar lá o capacho, havia quem
com chuva não quisesse entrar com lama;
não era como o padeiro, que entrava e sujava,
até que o Peidolas, filho do sapateiro, lançou
com outros o refrão como nas ilhas se fazia:
"ó freguês, ó freguês, entras, esfrega aqui os pés!"

(Pimenta, 2021:57)

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