04 março 2016

instante urbano xxxiv


Fui convidado por um amigo para ir jantar a sua casa e, ao mesmo tempo, assistir a uma demonstração de um robot de cozinha que dá pelo nome de bimbi. Numa destas noites lá fui eu com a restante família conhecer o animal...
Começo por dizer que foi uma experiência interessante, pois jamais tinha visto uma coisa daquelas em funcionamento, ou mesmo parada. Não a reconheceria se passasse por ela na rua... A promotora era jovem e simpática, formada em psicologia, o que contribuiu para melhorar substancialmente o nível da conversa. Enquanto todos experimentavam as facilidades, as comodidades, as artes e as capacidades da bimbi e íamos provando dessas bimbalhadas, dei comigo a imaginar o espanto que não seria para as minhas avós assistirem a uma demonstração destas. Elas que passaram as suas vidas agarradas aos fogões, aos tachos e panelas, iriam ficar estarrecidas se vissem a facilidade e a rapidez com que a máquina faz massa quebrada, ou se vissem o bacalhau desfiado milimetricamente e linear, ou ainda se pudessem fazer o caldo em meia dúzia de segundos. Elas que tinham a cozinha equipada com fogão, uma modernice para o seu tempo, que lhes permitia abreviar o tempo de confecção da comida, era em frente do lume, que se realizavam enquanto cozinheiras. Era aí que gostavam de estar: a controlar as brasas, para menor ou maior temperatura; a manusear os seus velhos, resistentes e pesados potes de ferro preto; a apontar um estrugido para que ficasse no ponto, a temperar um coelho para o guisar no pote; a segar as couves para o caldo; a fazer torradas de pão com unto ou azeite e, mais tarde, com manteiga; a grelhar um bom naco de vitela, ou a assar a alheira, a chouriça de carne ou o salpicão, acabados de retirar do fumo. E a habilidade com que manuseavam esses, por vezes, grandes potes, com que controlavam o lume com as tenazes e com o fole, e com que apresentavam essas iguarias na mesa. Memórias de momentos, cujos sabores e cheiros perduraram até hoje.
Agora, passadas poucas décadas, perceber esta diferença em que a experiência de cozinha pós-moderna, ou quiçá, neo-pós-moderna, tem por principais critérios a rapidez, a simplificação e a automatização de processos é para mim redutora e ilusória de uma realidade que, julgo, não faz ainda parte da vida de maior parte das famílias, ou daqueles(as) que no seu quotidiano têm que cozinhar. Não pude deixar de constatar que a bimbi, salvo raras excepções, é sempre objecto de criação de novas necessidades, ou seja, necessidades que não existiam e que o discurso promocional inventa, cria, descobre ou impinge aos seus potenciais compradores.
O jantar estava óptimo, a companhia era excelente e o vinho também. Saímos tarde e, já na rua, ao despedir-se de mim, a promotora diz-me: - Muito obrigada pela luta que me deu durante toda a noite. Ao que eu só pude responder que o prazer tinha sido todo meu.

Nota: o esquiço acima apresentado é do mano Daniel e representa fielmente a lareira da cozinha de casa da minha avó paterna. Lugar pequeno e humilde, lugar de todas as memórias aqui trazidas.

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