Na última Granta portuguesa (nº 6), dedicada à Noite, encontrei logo no primeiro texto, de autoria de A. M. Pires Cabral, uma reminiscência de tempos antigos e dos quais a minha memória consegue alcançar. Escreve ele:
Na incomparável e cheia de propriedade linguagem da minha terra, chama-se a uma tal mulher - porque esse é um ofício exclusivamente feminino - uma chegadeira. Pode parecer que o termo "chegadeira" traz consigo uma certa carga humorística ou punitiva (ridendo...), mas não estou certo de que assim seja. Ele é usado com total naturalidade. Vem de "chegar", que, entre outros significados que o verbo partilha com o Português normal, significa também, inocentemente, "levar a fêmea (geralmente falando da vaca) à cobrição". "É preciso chegar a vaca ao touro", diz-se com toda a candura deste mundo quando a vaca dá sinais de querer. No mundo rural, onde os humanos e os irracionais compartilham a condição animal em toda a sua extensão, tanto se chega uma vaca ao touro como uma rapariga ao seu pretendente. Tudo é chegar.
Pois eu também me lembro bem de levar as vacas ao boi, sempre que davam sinais de estarem com o cio. Não se utilizava era o termo "chegadeira", mas sim uma designação - "andar à cria", para significar o momento ideal para a cobrição. Esse momento era manifestado e perceptível pela vontade das fêmeas que, quando em manada, saltavam para cima de outras fêmeas, simulando o acto de cobrição - isto porque normalmente as manadas eram apenas constituídas por fêmeas. Em toda a aldeia existiam apenas dois ou três bois cobridores. Respeitáveis exemplares da raça mirandesa que se passeavam sobranceiros pelas ruas e canelhas da aldeia e cujos proprietários, conscientes do seu valor seminal, lhes davam bom trato e os libertavam do trabalho pesado da faina agrícola. Tendo em conta a quantidade de vacas, o sémen destes garanhões era extremamente cobiçado e havia mesmo uma corrida para o agendamento de cobrições. Momentos, com certeza, prazerosos para os animais, mas de vital importância para o equilíbrio e estabilidade das famílias.
Nesse tempo, que eu próprio experimentei e testemunhei, este vocabulário e suas significações eram totalmente reconhecidas por todos os indivíduos, que desde a mais tenra idade haviam sido boieiros(as) e haviam participado nesse devir da natureza animal. Actualmente, num tempo em que nem sequer existe gado bovino na aldeia, não só as gerações mais novas nunca experimentaram "levar e guardar a cria", como não reconhecem terminologias e procedimentos. Algo mais se perdeu, neste incessante correr do tempo e também por isso, as palavras de A. M. Pires Cabral se revelaram da maior importância para mim.
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