Por manifesta falta de tempo, aproveitei os dias de descanso do final do ano passado para actualizar grandes e pequenas leituras que se foram acumulando ao longo dos últimos tempos. Uma delas foi a entrevista do antropólogo cultural Arjun Appadurai ao P2 do Jornal Público, realizada por Alexandra Prado Coelho, no dia 18 de Dezembro de 2016.
Tendo estado recentemente em Portugal, orador convidado para as comemorações do 25º aniversário da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica de Lisboa, Appadurai, nascido na Índia e a viver nos EUA, onde lecciona Media, Cultura e Comunicação na Universidade de Nova Iorque, falou acerca da sua perspectiva sobre a actualidade mundial e, em particular, norte americana.
Sobre a vitória de Donald Trump nas últimas eleições este antropólogo refere que existiu um hiato entre a passagem de ridículo a real, que foi rápido, e a capacidade de análise e interpretação que não foi assim tão rápida. Para além do choque inicial, há que perceber o que se passou, entender a coligação de muita gente diferente que se criou em torno de Trump... éuma coligação da maioria branca que ultrapassa as divisões de classe e, de certa forma, até de género. Coligação de gente ressentida, desapontada e zangada com as políticas de Obama e cépticas em relação ao liberalismo. Para além disto, houve um grupo de pessoas que odiava o facto de ter um negro à frente do país.
O grande mérito de Trump, diz Appadurai, foi conseguir ligar duas mensagens bem distintas: a mensagem sobre a América e o mundo com a mensagem sobre os brancos na América, o que resultou em algo do género, vamos tomar conta disto outra vez, e a América vai tomar conta do mundo outra vez.
Outro problema identificado por Appadurai foi o desconhecimento por parte dos média e do universo mediático e académico da América profunda, dando o exemplo dos media tradicionais que são mais liberais, assim como muitas das pessoas que marcam o debate público e que estão protegidos desse mundo real e desses sentimentos da população; outro exemplo dado é o das universidades, onde pouco se sabe sobre a vida religiosa dos cidadãos norte-americanos e quando 80% destes são profundamente religiosos. Mas este pensador ainda identificou outro problema, que foi a tendência que existe para muita gente associar os liberais com uma ideia de elite e não uma ideia de massas. Diz Appadurai: o liberalismo não pode ser apenas uma posição por defeito. Tem de ter uma qualidade que se assemelhe ao espírito revolucionário em França.
Em relação a Bernie Sanders afirma que havia aí um verdadeiro potencial e que a verdade é que nos EUA existe uma longa história de medo de alguém que soe como um socialista, pois esta palavra está demasiado próxima do comunismo... Sanders fez um trabalho magnífico ao tornar a mensagem socialista séria e respeitada. Mostrou que se pode criar um movimento sem se ser um demagogo, falando apenas a verdade. Mas foi uma oportunidade perdida.
Por falar em verdade, quando questionado sobre a "pós-verdade", Appadurai refuta a ideia actualmente criada de que se vive num mundo da "pós-verdade", em que tudo se tornou imagem, opinião e perspectiva e tudo não passa de uma batalha de imagens, preferindo ser mais insidioso, ao afirmar que as más notícias estão sempre a empurrar as boas. As más movem-se mais rapidamente.Levanta a questão de como podem as visões liberais, de inclusão, de não violência, ganhar alguma força, face ao desafio retórico sobre como usar os meios de comunicação de massas para mobilizar o sentimento liberal.
Há um padrão global que avança para um mundo mais populista, afirma o autor, reforçando esta ideia com alguns exemplos de líderes de países importantes que têm exercido o seu poder de forma autoritária e populista, tais como na Rússia, na Turquia, na Hungria, nas Filipinas e agora nos EUA. Isto é tanto mais importante quando as questões das soberanias nacionais se deslocou da economia para as questões da identidade e da cultura nacional. Para estes líderes populistas que querem controlar o Estado é muito mais fácil dizer que o jogo está no debate sobre a censura, comportamentos sexuais, direitos das mulheres, minorias e questões de pureza étnica.
Regressando aos EUA e à sua actual situação, Appadurai relembra que aí sempre houve um fascínio pelos homens ricos e de sucesso. É a terra das oportunidades de uma forma extrema e totalmente individualista. É a terra onde equidade significa que pessoas como Trump devem ter uma oportunidade para fazer negócios e dinheiro, e equidade significa que todos devem tentar e que alguém irá ganhar. Justiça significa que não devemos todos estar a lutar.
Aborda também as questões económicas, alertando para a transferência do capital das manufacturas e da indústria, dos bens e dos serviços, para a troca de instrumentos financeiros, o que transforma radicalmente a economia, não havendo escassez e possibilitando uma acumulação de capital sem fim... a dívida é o nosso principal trabalho hoje. Fazemos dívida para que outros possam monetarizar sobre ela.Termina esta entrevista dizendo que temos que encontrar a fórmula de nos apoderarmos desses instrumentos financeiros e de os democratizar. O risco faz parte das nossas vidas de qualquer forma - só que há outras pessoas a transformá-lo em dinheiro. Porque é que não podemos ser nós?
Adenda: o conceito de mediascape, que eu adaptei e uso aqui no blogue, é um conceito de Arjun Appadurai, retirado precisamente da sua obra de referência "Dimensões Culturais da Globalização", que eu li em contexto de mestrado, mas que me tem servido de referência em vários momentos e contextos.
Adenda: o conceito de mediascape, que eu adaptei e uso aqui no blogue, é um conceito de Arjun Appadurai, retirado precisamente da sua obra de referência "Dimensões Culturais da Globalização", que eu li em contexto de mestrado, mas que me tem servido de referência em vários momentos e contextos.
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