26 fevereiro 2009

origem do mundo

Reflectindo sobre o recente e triste episódio de uma feira de livros em Braga, em que a polícia apreendeu cautelarmente um livro, por suposta expressa pornografia, argumentando que tal exposição e comercialização atentava contra a moral e os bons costumes das gentes locais que, incautos tropessariam com o seu olhar na capa desse livro, que apresentava uma imagem de um sexo feminino exposto. Imagem imortalizada pelo pintor Gustave Courbet (um dos pais do realismo), em 1866, obra controversa à época e que recebeu o nome de "Origem do Mundo".
Mais do que discutir a hipotética pornografia ou putativa indecência da mesma, procurei as causas e significados de tal episódio.
Numa primeira reacção, mesmo sendo um lugar comum e por demais referido, este é um caso típico de censura, hábito que sabemos de outro tempo, mas com o qual não estamos habituados a conviver, pelo menos de uma forma tão declarada. Depois, é um exemplo que demonstra bem o estado da civilidade da sociedade portuguesa naquilo que é, sincronicamente, a manifesta ignorância endógena portuguesa - ignorância cultural e estética, mas acima de tudo (e mais grave e triste) uma ignorância biológica e anatómica. Em pleno século XXI, preâmbulo de um novo milénio, seria expectável uma outra atitude, um outro comportamento cidadão, manifestando e reclamando uma outra informação e formação que toleraria a difusão de manifestações artísticas e culturais.
No entanto, se tentarmos uma leitura diacrónica na busca de explicações para tal comportamento, talvez consigámos perceber como tudo isto pôde suceder, em 2009 e em Braga - Portugal. Perceberemos a forte castração mental, a hipócrita castidade e o falso pudor de voyeur que nos caracteriza. Para tal, vou ao encontro de Marc Bloch que, já em meados do século XX, chama a atenção para o facto de nas sociedades mais rurais e tradicionais a educação da geração mais nova estar, geralmente, a cargo da geração mais velha. Em tais sociedades, dado as condições de trabalho manterem a mãe e o pai afastados durante grande parte dos dias, as crianças eram criadas pelos avós. Este processo iniciava-se muito cedo na vida da criança, que juntando-se ao grupo de parentes e outras crianças, é educada pela avó, que era a senhora da casa, preparava as refeições e, sozinha, tratava das crianças. Era tarefa sua ensinar a linguagem do grupo às crianças - já quando os antigos gregos chamavam às histórias "geroia" e quando Cícero as denominava "fabulae aniles", não estavam mais do que a registar a importância da avó na actividade da narrativa do grupo. Assim, a mediação dos pais que permitiria a mudança (social) não se verifica e esta forma de transmitir a memória, sugere Bloch, deve ter contribuido, em grau muito substancial, para o tradicionalismo e conservadorismo inerentes a tantas sociedades camponesas.
Por considerar e aceitar tais fenómenos como uma falha educacional e geracional - de berço, de tabu familiar, de carteira de escola e de saúde pública, pedagogicamente recomendo a leitura de CUNNUS - Repressão e insubmissões do sexo feminino, de Alberto Hernando, publicado pela Antígona em 1998, esperando que quem me visita e lê aquilo que eu escrevo não considere pornográfica esta capa e não me denuncie...

Da Antropologia ao Direito, passando pela literatura e a arte, todas as lógicas sociais tentaram reduzir o sexo feminino a estigmas originários, a ritos de sociedade, a cânones, moralidades, estéticas, ficções literárias ou metáforas derivadas do seu nome próprio. Toda esta encenação confunde e visa distrair da mais intensa forma repressiva, matriz de todas as violentações: o domínio do homem sobre a mulher. Para a ordem masculina, o homem é cultura, não passando a mulher de um trânsito entre a natureza e cultura, sempre se justificando o domínio do homem sobre a mulher pela necessidade de regular a parte irredutível de natureza inata da mulher - a parte animal quintessenciada na cona. Pródigo no seu desconhecimento do sexo feminino, o homem pretendeu que o convexo dos seus órgãos genitais é superior ao côncavo do sexo da mulher, argumentando que este seria uma bainha daqueles ou um complemento, mas nunca um sexo específico. Ignorância esta, convém notar, decorrente de temores inconfessados. De facto, não se desprende qualquer ameaça real da natureza da cona que justifique toda a virulenta repressão de que é alvo. O deus ex machina que provoca a violência e a perseguição contra a cona é o medo masculino resultante da precariedade do seu próprio sexo face ao feminino. Medo esse traduzido em misoginias ou exarcebado em machismos, mas sempre inseparável do fascínio que ao mesmo tempo a cona suscita. (HERNANDO, 1998)

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