16 abril 2020

Luís Sepúlveda

Morreu o escritor do fim do mundo... morreu o velho que lia romances de amor. Raios partam o coronavirus. Triste. Ainda há dias chegou-me por correio este livro dele...

15 abril 2020

enclausurado XXXIII

páscoa

Pela primeira vez, em mais de quarenta anos, passei estes dias de celebração religiosa em casa. Desde que me lembro, ainda criança, jovem ou adulto independente, por estes dias estive sempre, ou quase sempre, por terras de Trás-os-Montes. É, aliás, a época do ano mais agradável para se estar e passear pelos vales e montes eternos da minha existência. É agradável também porque os ossos já não se queixam de frio e a amígdala ainda não dilata com o calor.
A ver vamos quando poderei lá ir.

14 abril 2020

mediascape: autocracia

Li ontem no jornal Público algo que só nos pode deixar muito apreensivos. Segundo um relatório do V-Dem Institute. Pela primeira vez desde 2001, existem mais autocracias do que democracias no mundo, o que confirma um declínio global das instituições democráticas liberais. Esta tendência foi-se acentuando nos últimos anos e um pouco por todo o mundo, sendo apresentados os exemplos da Hungria, da Índia ou mesmo dos E.U.A. Diz-nos este documento que, em 2019, 92 países (51,4%) estão sob regimes autoritários, o que em termos demográficos significa que uma maioria dos cidadãos do mundo (54%) vive em autocracias e que as democracias eleitorais e liberais são agora 87, significando 46% da população mundial. Ainda assim, mesmo aqui alguns destes países apresentam tendências de perda de liberdades, como no Brasil, na Polónia e na Turquia.
A estes factos não poderemos deixar de relacionar a decrescente importância, centralidade e significado de instituições transnacionais como as Nações Unidas, a NATO, ou a União Europeia. Não podemos ficar indiferentes face a esta regressão democrática e seria mais do que tempo para as diferentes nações e estados democráticos, assim como essas organizações fundadas sob os desígnios da liberdade, do direito e da justiça, reflectirem sobre o seu desempenho e estratégias para inverter esta perigosa tendência, fortalecendo democraticamente os estados e suas instituições.

[ in Jornal Público, 13 Abril 2020 ]

mediascape: classista

Muito bem o Rui Tavares hoje, dia 13 de Abril, no jornal Público. Subscrevo cada vírgula que ele escreve.

12 abril 2020

de regresso à realidade

Na actual edição do Jornal de Letras (nº 1292), Viriato Soromenho-Marques apresenta três teses preliminares sobre as possíveis causas para a actual pandemia. Na primeira tese afirma que esta pandemia tem raiz na crise global do ambiente; na segunda tese refere-se aos perigos e riscos para a saúde pública, às escalas regional e mundial, que a crise ambiental e climática incluem; e na terceira tese acusa o neoliberalismo das últimas décadas ter deixado a política num estado comatoso e sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta crise. Pelo pragmatismo e acertividade desta terceira tese, transcrevo-a quase na íntegra:

O neoliberalismo deixou a política em estado comatoso. Quase 40 anos de pandemia neoliberal, atacando as mentes, os corpos e as instituições deixaram-nos, aos povos do mundo, sem sistema imunitário político e estadual para enfrentar esta pandemia em sentido estrito. O narcisismo patológico de Trump, ou a estupidez cósmica de Bolsonaro, são apenas a ponta do iceberg. A experiência vivida por António Costa perante as "repugnantes" declarações de um insignificante ministro das finanças holandês, ilustram o egoísmo, a cegueira e a miséria moral e intelectual de grande parte das lideranças na União Europeia. Uma década de austeridade severa deixou os sistemas de saúde enfraquecidos. Não só em Portugal, mas também em quase toda a Europa.
(...)
Certo e seguro é que, depois de décadas vivendo na atmosfera quase narcótica de inconsciência e irresponsabilidade dos roaring years de um crescimento exponencial movido pela máquina trituradora do neoliberalismo, chegámos a uma situação em que a humanidade se encontra em vertiginosa rota de colisão com o Sistema-Terra. Esta pandemia veio acordar-nos para os duros factos de uma vida onde os actos têm consequências e os erros pagam-se caro. Estamos de regresso ao sentido trágico da existência. À dura experiência da nossa interdependência e da nossa vulnerabilidade. Estamos de regresso à realidade. O único lugar onde a nossa humanidade pode florescer e transcender-se.
(Viriato Soromenho-Marques, in Jornal de Letras, nº 1292, Abril 2020)

enclausurado XXXII

prioridades e preferências

Uma das coisas boas que aconteceram com esta situação pandémica, foi o desaparecimento do hegemónico raciocínio económico-financeiro, omnipresente e omnipotente, nas nossas vidas durante os últimos anos. É verdade que trocámos uma hegemonia por outra e que agora o assunto que nos orienta a vida é a pandemia, todas as suas dimensões e afins, mas ao mesmo tempo, por todo o lado encontramos alternativas, nunca como hoje se fala tanto de coisas outras. O raio do vírus proporcionou-nos uma existência, apesar de confinada, diversificada. O prazer que é poder ler, ver e ouvir, aprendendo com a variedade de conteúdos disponíveis para consumo, tanto e tanto conhecimento.
Ainda que se saiba que o preço que se pagará mais à frente será tremendo, neste momento sou dos que consideram que o importante é salvar o máximo de vidas humanas, tratar os doentes e garantir a sobrevivência dos indivíduos e das famílias. De que serviria a preocupação económico-financeira se deixássemos morrer as pessoas? A seu tempo o Estado e todos os que sobreviverem tratarão desse outro enorme problema que, com toda a certeza, nos aguarda.

10 abril 2020

mediascape:insofismável

Em casa, um apetite tremendo.
Somos estômago e dois olhos.
[ Gonçalo M. Tavares, revista E, 10/04/20202 ]

enclausurado XXXI

balancete

Completam-se hoje quatro semanas de confinamento. No próximo dia 13 completar-se-á um mês desde que nos trancámos à chave dentro de casa. Eu diria que, tendo em conta as circunstâncias, está a correr muito bem. Estamos, claro, desejosos da liberdade de podermos ir para onde nos apetecer, mas a perspectiva de que poderemos ainda estar, mais ou menos, a meio desta quarentena, tem cada vez menor importância nas nossas vidas. É que rapidamente nos habituamos à clausura e suas rotinas. Estamos confortáveis. Para além disso, as notícias que nos chegam dos círculos mais próximos, de familiares e amigos, são tranquilizadoras, não havendo notícia de qualquer infectado ou doente. Ainda assim consciente estou, estamos todos, de que ninguém está a salvo ou imune. Isto ainda não acabou, muito pelo contrário e, acima de tudo, desconhecemos o que nos espera na tempestade que se aproxima.

escritor, consegues escrever isto?

Quando a pandemia foi declarada e o mundo fechou, incluindo o mundo da cultura, houve quem dissesse que a literatura seria a arte menos afectada. Os escritores poderiam continuar a ficar em casa a escrever. A ideia do escritor mais ou menos recluso faz parte de um imaginário. E se, de facto, a maior parte escreve em casa e continue a habitar a casa onde sempre escreveu, a ver- dade é que a casa mudou. Mesmo quando à volta tudo parece como antes.
(...)
Como escrever assim? Como escrever numa altura em que todos os escritores do mundo parece que estão a to- mar notas sobre o mesmo assunto? Que romance se po- derá esperar daqui?, interrogou-se Sloane Crosley num ensaio na New York Review of Books em Março que traz à já difícil equação variantes tão complexas como as de es- paço e tempo, ambas alterados.
(...)
A ideia romântica do escritor em casa, a trabalhar, a pensar, no lugar onde sempre esteve apenas com os seus demónios privados, nota Dulce Maria Cardoso, já não é possível. Ou não é possível agora:
(...)
Rui Manuel Amaral: “Com o vírus a ficção ultrapas- sou a própria realidade. Qualquer coisa meio distópica em que éramos capazes de pensar há dois ou três meses podia ser transformada numa espécie de ficção literária. O mundo inteiro a parar por causa de um vírus não é nada que já não tivesse sido pensado de mil maneiras. Mas a ficção ultrapassou a realidade; neste momento estamos a viver uma espécie de ficção. Ou seja, a própria realidade tirou-nos o tapete e tirou-nos a substância ficcional. O que é que se há-de escrever neste momento? Tudo o que se possa escrever não chega aos calcanhares daquilo que estamos a viver na realidade, e é isso que está a tornar-nos meio mudos; ficamos meio paralisados. A ficção está paralisada porque a realidade ultrapassou a ficção."
(...)
As andorinhas este ano ainda não chegaram”, conta Mário Cláudio, que também dei- xou de ver luz à noite nas casas dos vizinhos. “É estranho. Isso é muito estranho, porque as pessoas não estão só em casa; estão fechadas em casa.”
(...)
Rui Manuel Amaral é, entre eles, o que escrevia e lia na rua. Faltam-lhe as esplanadas, os cafés que já não era o que costumavam ser, mas que talvez voltem a ser qualquer coisa mais próxima do que eram quando gostava deles. Remeteu-se a casa, só é capaz de escrever no blogue. “O blogue é um pretexto para ir rascunhando umas notas sobre o assunto, sobre o que é possível carimbar da es- puma dos dias. São coisas mais ou menos desinteressan- tes e banais, não é nada de especial, mas pelo menos obriga-me a ir mantendo a mão activa porque a ficção não me está a sair nada de especial. A realidade é mais louca do que qualquer coisa que possamos imaginar.”
[ Isabel Lucas, in revista Ípsilon do jornal Público, 10 de Abril de 2020 ]

tele-escola

A partir da próxima 3ª feira, dia 14 de Abril, regressarei à tele-escola para acompanhar as aulas da minha criança. O horário foi hoje conhecido e, em princípio, vai dar para gerir com o tele-trabalho da mãe e as minhas aulas online. Veremos como ele se adapta ao novo formato e esperemos que os conteúdos consigam atrair e cativar os alunos.

09 abril 2020

enclausurado XXX

tele-ensino

Desde o momento em que se soube, ao final da tarde, que o ensino básico não regressará às salas de aula neste 3º período, o meu filho (9 anos) gosta tanto da escola, que anda pela casa, feliz e contente, a cantarolar the Beatles. Diz-se feliz.
Agora o todo:
Desde essa comunicação ao país, os responsáveis políticos e da educação desdobram-se pelos canais de televisão em narrativas, explicações e justificações que fundamentem esta decisão.
Meus senhores e minhas senhoras, a decisão está tomada e há que aceitá-la. É uma alteração radical de paradigma no ensino e ninguém estava preparado para tal imprevisto. O esforço é e será enorme para todos os intervenientes e para toda a comunidade escolar. Há lacunas, imperfeições e injustiças, pois por mais que se afirme, por mais que se garanta, a equidade e a preocupação em que nenhum aluno seja prejudicado, toda a gente sabe que isso irá acontecer e que serão muitos os alunos para quem o ano lectivo e respectivas aprendizagens terminaram, efectivamente, em Março. Neste momento recordo todos os alunos provenientes de aldeias longínquas, perdidas pela imensidão do interior do país que, já em situação normal, diariamente, são obrigados a fazer dezenas e dezenas de quilómetros para irem à escola, localizada no centro da vila ou cidade mais próxima. Agora imaginem esses mesmos alunos, não podendo ir à escola, sem acesso a sequer um pc, quanto mais internet, algumas vezes, sem televisão e sem energia, assediados permanentemente pelos pais e familiares para contribuírem para o esforço colectivo nas tarefas domésticas e agrícolas. Qual escola? Qual sucesso? Qual igualdade ou equidade? Toda a gente sabe que isto é assim e é preferível omitir. Pior será se não sabem, pois demonstram não conhecer o país e a realidade de tantas e tantas famílias.
No entretanto, faremos todos o melhor por manter as nossas crianças motivadas e concentradas na aprendizagem alternativa dos conteúdos programáticos.

mediascape: risco de infecção

Mapa produzido pelo Instituto Superior Técnico, actualizado diariamente.
(in jornal Público - 9/4/20)

08 abril 2020

enclausurado XXIX

o tubo

Ao contrário do que é habitual (leia-se, tempo ordinário), tenho dedicado uma ou duas horas das minhas noites à música. Servindo-me do "tubo", como alguns amigos o chamam, tenho aproveitado esse arquivo para, acima de tudo, rever, recordar e reavivar velhas memórias. Bem haja o tubo.

07 abril 2020

mediascape:momento

Hoje, no jornal Público.

deusa da vingança


Leitura da última noite e madrugada. Não fiz de propósito. A escolha deste livro para ler nesta altura resultou da ordem em que se encontrava na pilha de livros por ler. Philip Roth leva-nos até meados da década de 40 do século XX, para nos contar a história da terrível epidemia de pólio* que se abateu sobre Newark no Verão de 1944, através da experiência pessoal de um jovem professor de Educação Física.
Já aqui o referi, talvez até mais do que uma vez: cheguei a este autor à relativo pouco tempo, e foi uma agradável surpresa. Gosto muito e tenho vindo a comprar e a ler a sua obra. Irei regressar, mas no imediato vou até ao início do século XX e à prosa de Raul Brandão para conhecer a vida de pescadores e marítimos (...) de Caminha a Tavira (...) mundividências, modos de ser e estar, diferentes relações com o mar e com a sua faina.

* popularmente conhecida por Pólio, a Poliomielite atacava principalmente as crianças e jovens, provocando diferentes graus de paralisia e incapacidade.

dia mundial da saúde

Nem de propósito. O enquadramento conjuntural que hoje vivemos motiva-nos a assinalar e enfatizar esta data, exigindo ao Estado mais e melhor SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE, ao serviço de todos os portugueses.
VIVA o SNS!

enclausurado XXVIII

ironia

Não deixa de ser uma triste ironia a notícia do internamento de Boris Johnson, Primeiro-ministro inglês, em consequência da infecção por Coronavírus. Convém relembrar a indiferença e o desdém com que o seu governo actuou perante a ameaça desta pandemia. A ele, enquanto responsável máximo da nação, era-lhe exigida alguma racionalidade ao lidar com o perigo eminente para a vida dos seus con-cidadãos e não uma atitude descontraída, irresponsável e até criminosa, ao relativizar esses perigos, defendendo como solução um rápido contágio social, de forma a atingir-se uma imunidade comunitária. Tal como os outros dois patetas do outro lado do Atlântico (Bolsonaro e Trump), não soube manter e promover a razão, nem com os órgãos de comunicação social, nem com a academia, ou seja, com a ciência. Não por acaso, a vida não lhe correu bem e foi o primeiro a experimentar pessoalmente os efeitos da sua soberba e da sua arrogância perante a crise.
Espero e desejo a sua recuperação e restabelecimento da sua saúde.

livrarias independentes


Com a crise provocada pela pandemia e pelo Estado de Emergência, o sector livreiro organizou-se e promoveu esta rede de livrarias independentes. Boa iniciativa, infelizmente necessária. Vamos ajudar comprando-lhes livros. Na página que criaram na internet pode ler-se:

A Rede de Livrarias Independentes (RELI) é uma associação livre de apoio mútuo composta por livrarias de todo o território português sem ligação a redes e cadeias dos grandes grupos editoriais e livreiros.Procuramos uma coordenação de esforços para enfrentar a crise no mercado livreiro, que vem comprometendo a existência de pequenas livrarias em todo o país — principalmente agora neste período de pandemia —, intervindo junto da sociedade e dos poderes públicos.

06 abril 2020

enclausurado XXVII

lares e 3ª idade

O alarme soou e o país acordou para a triste realidade em que muitos idosos existem. Essa realidade não deveria ser uma novidade, nem sequer deveria ser notícia. A verdade é que as instituições que abrigam os nossos mais velhos, nomeadamente as instituições de cariz social - misericórdias, paroquiais e outras - há muito que são autênticas ante-câmaras da morte, lugares de exclusão social, onde são colocados todos os que não têm condição, autonomia e capacidade de manterem o seu "lugar". Estas instituições totais (conceito de Erving Goffman) foram criadas pelas sociedades com o propósito de afastar da nossa convivência aqueles que não queremos encontrar ou suportar, garantindo-lhes um mínimo de dignidade, mas aceitando a degradação extrema da sua existência.
Perante uma pandemia como esta, que ataca com severidade os mais idosos, não poderia ser estranha a percepção de que os lares, e outros que tais, seriam alvos privilegiados do vírus. O pânico a que assistimos nos últimos dias em relação ao que se passa nessas instituições é uma evidência da extrema hipocrisia da nossa sociedade e da omissão e demissão do Estado perante a vida desses cidadãos portugueses. Uma vergonha.
[ escrito a 5 de Abril ]

enclausurado XXVI

bunkers

Vivemos enclausurados nas nossas habitações. Com maior ou menor espaço, estamos confinados às suas paredes e o ar que respiramos chega-nos através das janelas que, ao contrário do que é habitual, estão sempre escancaradas. É a rua possível.
Estamos fechados em autênticos bunkers, uma vez que a casa de cada um de nós se transformou num refúgio seguro, que nos protege do inimigo de toda a humanidade. Claro que falamos de bunkers especiais, com todo o conforto e comodidade, bem diferentes daqueles que habitam o nosso imaginário do tempo das grandes guerras. Não nos queixemos, não falta electricidade, água potável, TV, Internet, telefones e telemóveis, o que nos permite manter alguma normalidade, ocupar as horas dos dias e noites, assim como manter-nos em rede, comunicáveis e acessíveis.
Experimentamos um tempo extraordinário e peculiar.
[ escrito a 4 de Abril ]

04 abril 2020

evolução da pandemia na U.E.

Infografia retirada do jornal Expresso de 4 de Abril.

la casa de papel


A Netflix inaugurou ontem a quarta temporada da série espanhola "La Casa de Papel". Mais 8 episódios da incrível aventura de um bando de ladrões especialistas em assaltos impossíveis, dramáticos e espectaculares. Nós, aqui em casa, estivemos até perto das três da madrugada para vermos toda a temporada. Está vista. É de facto muito bem construída e realizada. Gosto, gostamos muito. Pena é a próxima temporada demorar tanto tempo a chegar, pois, nas melhores das hipóteses, só lá para 2021 é que poderemos contar com ela.

02 abril 2020

enclausurado XXV

ilusão, a minha ilusão

Se é verdade que é nos momentos extraordinários, como o actual, que os grandes líderes se revelam, também é verdade que nos mesmos momentos todos nós, comuns mortais, nos confrontamos com a História; a nossa e a de todos, ou seja, a colectiva. Ao mesmo tempo, e à medida que nos vamos consciencializando da dimensão da tragédia, não conseguimos evitar os piores pensamentos sobre o que há-de vir. Não sei se sobreviverei, não sabemos quem sobreviverá, mas ainda que assim seja, o que virá a seguir será igualmente terrível, pois as perspectivas económicas são tremendas e o futuro muito incerto e inseguro para muita, muita gente.
Não tenho grandes ilusões sobre a sociedade que advier depois da tormenta, pois as forças e dinâmicas das nossas sociedades tenderão a restabelecer os seus paradigmas. Contudo, acredito que um novo mundo é possível e que esta pandemia poderá ser a sua cosmogonia. Socorrendo-me de dois versos de uma famosa cantiga de Zeca Afonso, eu gostaria de poder vir a encontrar em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade.

pensageiro frequente

Curioso título para uma colectânea de textos ligeiros, como o autor os define na nota introdutória, destinados não exactamente a um leitor "típico", mas um passageiro que pretende vencer o tempo e, tantas vezes, o medo. Textos publicados na revista Índico - revista de bordo das Linhas Aéreas de Moçambique, levam-nos em viagem por diferentes paisagens moçambicanas, destacando as diversidades, vegetal e animal, autóctones. Viajarei agora, pelas letras de Philip Roth, para terras do Tio Sam e, em concreto, para Newark que se vê a braços com uma epidemia aterradora. Trata-se do livro Némesis.


Não é o voarmos sobre os lugares que marca a memória. É o quanto esses lugares continuarão voando dentro de nós. ( Mia Couto, pág. 123 )

01 abril 2020

servidão digital

Este tempo de crise tem sido invasivo da privacidade dos alunos, das famílias e dos professores, com um enorme excesso de solicitações e exigências. Se há paradigma já evidente é o da servidão digital. Sem horário de actividades, tanta diligência e desrespeito pela privacidade alheia transformarão pais, professores e alunos em simples plataformas humanas à deriva, no meio das plataformas digitais.
Santana Castilho, hoje no jornal Público.

31 março 2020

enclausurado XXIV

futilidades

Pedindo desculpa pelo desabafo e pela futilidade, aquilo que mais falta me faz sempre que saio à rua é o poder tomar café. Hoje, logo pela manhã, tive que ir ao centro do Porto e não vi um único café aberto. Apenas as padarias e os "pães-quentes" servem cafés, em copos de plástico e para tomar na rua. Assim não, obrigado. Prefiro o Nespresso em casa.

30 março 2020

passatempo


Foram precisos cerca de 15 dias para terminarmos este puzzle. Difícil pela monotonia das cores e tons. Venha o próximo.

enclausurado XXIII

o cafajeste

As imagens e os sons que nos chegam do outro lado do Atlântico são assustadoras. Trump e Bolsonaro são dois ignóbeis abortos que, para infelicidade dos seus povos, ascenderam democraticamente ao poder. Por estes dias Bolsonaro vai insistindo na demonstração pública da sua inacreditável ignorância e teima em humilhar o povo brasileiro de uma forma como jamais se viu. Para além de negar a existência de qualquer pandemia no seu país e promover comportamentos contrários aos recomendados pela esmagadora maioria dos responsáveis políticos e de saúde pública, expondo à sua sorte milhões de vidas de concidadãos seus, atira o seu povo para o esgoto da existência humana, admitindo que o "brasileiro" está habituado a nadar na merda e, por isso, está imunizado a qualquer vírus. Um cafajeste que não só deveria ser destituído, como deveria ser incriminado por crimes contra a humanidade.

enclausurado XXII

repugnante

A reacção do nosso Primeiro Ministro ao resultado obtido na reunião do Conselho Europeu, não poderia ser mais clara e unívoca sobre o estado comatoso da dita União Europeia. A atitude da Holanda, ou agora, Países Baixos, perante a possibilidade de mutualização da dívida dos países europeus, com a criação de eurobonds, para fazer face à crise instalada, é paradigmática da visão utilitária que alguns países têm da União e do Euro. A mesquinhez e a avareza demonstradas num momento tão dramático para todos, cujas intensidade e longevidade são ainda uma incógnita, não deixam antever um final feliz, pois se nem num momento destes há união e solidariedade, então para que raio serve essa União Europeia?
[ escrito a 28 de Março ]

mediascape: difícil

É tão difícil combater ao mesmo tempo o vírus, a pobreza, o privilégio e o despotismo! É tão difícil tratar das duas coisas, do imediato e do futuro! Da saúde e da sociedade! Da vida e da democracia! É tão difícil tratar de tudo sem demagogia, sem oportunismo, sem aproveitamento político! É tão difícil deixar à ciência o que é da ciência, à política o que é da política, à cultura o que é da cultura e aos indivíduos o que é deles! É tão difícil impedir que a emergência se transforme em regra! Que a ecácia liquide a liberdade! Que a centralização de esforços se transfigure em sistema de vida! Que a vida e a saúde sejam cada vez mais o recurso colectivista e a mercadoria capitalista! Encarar estas dificuldades ou contradições é o princípio de uma sociedade decente.
(António Barreto, in jornal Público, 29/03/2020)

28 março 2020

the leaders of the free world



Elbow é uma das bandas que mais gosto e ouço. Conheço praticamente toda a sua discografia e considero-a de grande qualidade, mas destacaria os discos "The Seldom Seen Kid" e "Build a Rocket Boys!", assim como, acima destes, o disco "The Leaders of the Free World". Aproveito estes dias e noites para consumir muita música, ainda que através de auscultadores para não incomodar o resto da família. E não é preciso acrescentar mais ao muito barulho que eles já produzem.

26 março 2020

enclausurado XXI

teorias da conspiração

Muito se tem especulado sobre a origem, ou melhor, sobre a verdadeira origem deste surto pandémico. Basta recorrer a um qualquer motor de busca na internet e é, como se costuma dizer, à vontade do freguês, pois são mil e uma histórias conspirativas sobre o que motivou o aparecimento do coronavirus.
Neste momento é o que menos importa, pois estamos no tempo de o combater, controlar e derrotar. Depois, um dia e se sobrevivermos, será então o tempo de procurar respostas sobre esse momento primeiro e as motivações e propósitos que terão permitido a disseminação planetária deste vírus.
Por hora, vamos lá dar-lhe nas trombas.

enclausurado XX

triunfo da ciência

Independentemente do que possa vir a acontecer, da evolução da pandemia e das suas consequências multi-dimensionais, penso que é já evidente para todos nós a confirmação ou a reafirmação do conhecimento científico na resposta a dar em situações como esta. O triunfo da razão sobre os cangalheiros da banha-da-cobra que por todo o lado vendem ilusões e mentiras aos mais fracos e desprovidos.
Esta pandemia vem demonstrar, espero, definitivamente que o investimento a realizar deverá ser direccionado para a formação, para a informação, para a especialização, enfim, para o conhecimento cada vez maior e melhor do mundo que nos rodeia. O contributo da ciência, nas suas dimensões teórica, tecnológica e experimental, é incomensurável. Sem qualquer espécie de dogma, a minha crença é aí que reside.
[ escrito a 25 de Março ]

24 março 2020

o prazer de ler

Só nos últimos dias consegui ler por prazer. Sem pressa, sem lápis, sublinhados ou notas de margem, e pelo simples gosto de ocupar as horas a ler. A primeira escolha, da numerosa lista em espera, recaiu sobre Amin Maalouf e este seu "Escalas do Levante", uma pequena viagem sobre as geografias da sua existência. Agora, seguirei para ambientes africanos e para a escrita de Mia Couto.

23 março 2020

enclausurado XIX

o horror que se adivinha

Ao espreitar o mundo interrogo-me, retórico, sobre o que se adivinha para quando esta nuvem mortal cobrir certas e determinadas populações: de imediato penso nas favelas do Rio de Janeiro e de outras cidades brasileiras e sul-americanas, nos musseques de Luanda ou nos bairros de lata de Joanesburgo, nos emigrantes sul-americanos em trânsito ou retidos na fronteira entre o México e os EUA, nos milhões de refugiados em África, no Médio Oriente ou mesmo na Grécia, nos deslocados de guerras, como na Síria ou na Turquia.
Não vai ser bonito.

enclausurado XVIII

perigos eminentes

Ao olhar para o sobressalto que arrepia o mundo, não posso deixar de manifestar o meu desagrado e profunda preocupação com aquilo que está a acontecer em alguns países ditos ocidentais e democráticos. É que a pretexto desta pandemia, muitos Estados têm (e bem) decretado um Estado de Emergência Nacional, mas alguns desses países têm aproveitado esse estado excepcional, que na sua essência é algo temporário, para o perpetuar no tempo e transformar em autênticas ditaduras, abolindo controlos e equilíbrios democráticos. Falo em concreto da Hungria, onde aquilo que já existia não era propriamente uma democracia plena, mas agora Viktor Orbán vai pedir ao parlamento poderes especiais como a suspensão de algumas leis e a possibilidade de governar por decreto; e falo de Israel, onde Netanyahu, que perdeu as recentes eleições, mandou fechar o parlamento, onde a oposição tem a maioria, mandou a população ficar em casa e começou a decretar ilegitimamente e a seu bel-prazer.
Estes são apenas dois exemplos muito assustadores de uma realidade que pode estar a germinar e a crescer um pouco por todas as latitudes. Importa preservar as democracias destes ditadores e dos seus apetites fascizantes.

22 março 2020

enclausurado XVII

ler e escrever

Quando soube que iria permanecer por tempo indeterminado nesta condição, o primeiro sentimento que me assaltou foi um entusiasmo por poder ficar casa, sossegado e a fazer o que mais gosto, ou seja, a ler e a escrever.
Aconteceu que não foram precisos muitos dias aqui, fechado com o resto da família, para perceber que, afinal, não vou poder dispor das horas como bem previra e me apetecia. Em todo o caso, os livros acumulados para serem lidos, alguns à espera há vários meses, terão agora uma oportunidade temporal única para cumprirem o seu devir.
É essa a esperança e o entusiasmo sobrevive nesse desejo.
[ escrito a 21 de Março ]

enclausurado XVI

ocupação dos tempos livres

Por falar em momentos simpáticos e aprazíveis, um dos passatempos em família tem sido a construção de puzzles. Logo nos primeiros dias de reclusão, fomos ao arrumo recuperar uma dúzia de velhas e poeirentas caixas desses exercícios impróprios para hiper-tensos e agitados (como eu), que num outro tempo comprávamos e era passatempo recorrente cá em casa.
Ao longo dos dias, num esforço de equipa e sempre que apetece, vamos tentando acrescentar algo ao trabalho já realizado e tem sido engraçado ver, ainda que lentamente, que todos nós lá vamos espreitar, escolher uma ou outra peça para a tentar encaixar no sítio certo. Por vezes, juntamo-nos todos à volta dele e, noutros momentos, o espreitar transforma-se em longos minutos de exercício.
Depois de cerca de uma semana ainda não terminamos o primeiro, mas não importa. O propósito é mesmo esse, entreter nas horas mais vazias, ou descansar de alguma tarefa ou trabalho mais intenso.

enclausurado XV

informação

Eu sempre gostei de estar informado sobre a realidade que me rodeia e, agora, por todas e mais razões, ainda me sinto mais ávido das notícias deste mundo insano em que passámos a viver. No entanto, já não consigo ligar a TV, tal é a overdose de informação sobre a pandemia. Trata-se já de uma questão de salubridade mental e de me proteger do horror que, sei, gente demais experimenta, mas o dramatismo e sensacionalismo que ocuparam os espaços de informação ampliam até ao insuportável esses factos.
Desligado q.b. da actualidade, vou ocupando o tempo com outros conteúdos bem mais simpáticos e aprazíveis.

20 março 2020

centenário

Por falar em aniversário, em Janeiro deste ano o Padre Manuel Fernandes do Vale, meu tio-avô, completaria cem anos de idade. Para assinalar o seu centenário, escrevi um texto que tinha já estava pensado há algum tempo e que pretendia publicar durante 2020 numa qualquer publicação relativa à região de Trás-os-Montes. Depois de dois ou três contactos percebi que não iria conseguir e, assim sendo, resolvi mandá-lo imprimir em formato livreto, utilizando a minha chancela, vestindo-o com algum cuidado e dando-lhe maior dignidade.
Vou distribuí-lo apenas por familiares e por alguns amigos mais próximos.

enclausurado XIV

aniversário

O meu filho fez ontem nove anos e passou o dia tranquilo, nas mesmas rotinas dos dias anteriores, sem questionar ou reclamar pelo que fosse. Ao longo dos últimos dias, tínhamos vindo a mentalizá-lo para adiarmos a celebração do seu aniversário para mais tarde. Eu não sei se ele percebeu completamente, mas reagiu bem sem a habitual festa com amiguinhos e familiares e sem presentes. Na véspera perguntamos-lhe o que ele queria comer no dia dos anos e ele, que não liga patavina à comida, depois de adiar a resposta quase até ao final do dia, lá respondeu que queria massa à bolonhesa. Foi-lhe satisfeita essa vontade e depois do jantar, fizemos ligação telefónica para uns avós, e video-chamada para os outros avós e para os tios, para podermos cantar em uníssono os parabéns. Já está, a verdade é que o tempo não se detém e ele já vai a caminho dos dez.

18 março 2020

enclausurado XIII

aulas online

Com a suspensão das aulas presenciais, foi implementada na Escola onde lecciono uma alternativa de leccionação online para todas as unidades curriculares, com a excepção das aulas práticas.
Eu já participei, em contextos variados e diferentes ambientes, em video-conferências, mas nunca tive que preparar conteúdos, nem programar aulas para todo um semestre neste formato. Essas aulas começarão hoje mesmo, daqui a cerca de duas horas, e em teoria tenho mais de cinquenta alunos inscritos que poderão participar nesses encontros virtuais. Não tenho conteúdos preparados especificamente para este formato, apenas uma ideia do que pretendo transmitir e partilhar, e será com isso que vou enfrentar essa nova experiência. Se vai ou não funcionar, se vou ou não conseguir atrair a atenção dos alunos, se vou ou não conseguir passar a mensagem, são questões que me têm importunado o espírito, mas ainda assim estou ansioso por essa nova aventura.

enclausurado XII

saídas precárias

É a sensação que tenho sempre que saio de casa. Parto do princípio que dentro de casa, por enquanto, estamos a salvo e imunes. Serão essas minhas saídas a porta de entrada para qualquer contaminação. Não tenho máscaras, nem luvas, nem sequer álcool (fartei-me de o procurar para assar uns chouriços, mas não o encontrei em lado nenhum), mas no exterior da nossa fortaleza procuro não tocar em nada, nem em ninguém com as mãos. Pareço um anormal a abrir as portas com os cotovelos e pés; uso lenços de papel, envolvendo os dedos indicadores para utilizar multibancos e, nos lugares onde entro, sempre que disponível, uso géis de álcool.
Sempre que regresso a casa, dispo-me e lavo as mãos, braços, cara e pescoço com água e sabão azul (de barra). Paranóia? É provável, mas pelos meus não quero saber. Assim vou continuar, a sair e a fazer.
[ escrito a 17 de Março ]

solidão

Todos os homens descobrem um dia a sua mineral solidão. Eles são essa solitude. Mas a quase totalidade a esquece em seguida, um número exíguo a carrega até ao fim, testemunha ou vítima de uma criação que é uma contínua agonia fulgurante.
[ Eduardo Lourenço, in Jornal de Letras nº 1290, Março 2020 ]

enclausurado XI

roleta russa

No momento em que sabemos da primeira morte em Portugal provocada pelo famigerado vírus que nos está a colonizar, a reflexão não pode deixar de nos alertar para a aleatoriedade desta epidemia. Será a sorte de não ser, ou o azar de ser contaminado. Uma autêntica roleta russa para cada um de nós.
[ escrito a 17 de Março ]

enclausurado X

estado de excepção

Na eminência de ser declarado o estado de emergência em Portugal, devido à pandemia que guerreamos, continuo a acreditar naqueles que nos governam e administram a coisa pública portuguesa e, para ser sincero, daquilo que e é possível perspectivar, não encontro ninguém que pudesse ser melhor timoneiro da nossa barcaça do que o primeiro-ministro António Costa.
Isto para perguntar: será necessário recorrer (já) a esse estado de excepção? Estaremos nós a ser irresponsáveis e negligentes em relação à nossa responsabilidade cidadã? Não me parece, considero até que, pelo que me tem sido possível testemunhar nas várias saídas precárias, os portugueses têm tido, salvo raras excepções, um comportamento exemplar no que tem sido a sua manifestação pública. Portanto, a questão irá perdurar: seria necessário impor já, pela força da lei excepcional, um estado de vigilância permanente e intolerante?
Em todo o caso, aceito-o e respeitá-lo-ei, sem reservas.
[ escrito a 17 de Março ]

17 março 2020

Pedro Barroso

Chegou-me agora a notícia da morte de Pedro Barroso. Figura incontornável da música popular portuguesa. Desaparece assim mais uma personagem maior do nosso imaginário colectivo.

o medo

Excertos de artigo do filósofo José Gil, publicado no jornal Público, de 16 de Março de 2020:

Será um desastre planetário e regional, colectivo e individual, já presente e ainda futuro, conhecido e familiar, mas sempre longínquo e estrangeiro, destinado aos outros mas cada vez mais perto. Não é o simples medo da morte, é a angústia da morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo.
(…)
O coronavírus, pondo em perigo qualquer um, independentemente da sua riqueza ou estatuto, torna todos iguais — não perante a morte, mas perante o direito à vida, à saúde e à justiça.
(…)
Este medo é, sobretudo, o medo dos outros. O contágio vem inopinadamente, violentamente e ao acaso. Qualquer um, estrangeiro ou familiar, pode infectar-nos. O acaso e o contacto passam a ser perigo e ocasião de morte possível, e todo o encontro, um mau encontro. Neste sentido, o outro é o mal radical.
(…)
a pandemia transforma a percepção que se tinha da globalização. Sabíamos que ela existia, conhecíamos os seus efeitos (nanceiros, climáticos, turísticos), mas só raros tinham dela uma experiência vivida. Graças ao coronavírus, e pelas piores razões, o homem comum tem agora, ao longo do seu tempo quotidiano, a experiência da globalização. Deixou de ser abstracta, tornou-se uma globalização existencial. Vivemos todos, simultaneamente, o mesmo tempo do mundo.
(…)
Como resistir, como desfazer ou pelo menos atenuar o medo que nos tolhe? Com mais conhecimento, sim, e mais informação, e mais entreajuda e racionalidade. Resta-nos sobrepor ao medo que nos desapropria de nós o medo desse medo, o de sermos menos do que nós. Resta-nos, se é possível, escolher, contra o que nos faz tremer de apreensão e nos instala na instabilidade e no pânico, as forças de vida que nos ligam (poderosamente, mesmo sem o sabermos) aos outros e ao mundo.

enclausurado IX

síndrome do frigorífico

Diz-nos a Emília que isto vai ser uma desgraça, que ela vai engordar como nunca. E que se sobreviver ao vírus e a esta pandemia, será, de certeza, uma outra mulher, uma mulher bem mais gorda.
É que o dia todo fechada em casa leva-a, a espaços muito curtos, à cozinha e ao frigorífico. O apetite cresce de hora para hora, de dia para dia. A desocupação faz sentir mais fome e sede, e como sabemos que temos acesso fácil e rápido à comida e bebida, a desgraça acontece num abrir e fechar de frigorífico.
É o que designo de síndrome do frigorífico (cheio, de preferência).
[ escrito a 16 de Março ]

enclausurado VIII

no meio do nada

Mesmo antes desta epidemia nos ter alcançado e quando já se prognosticavam diferentes cenários, eu pensei em pegar na família e refugiar-me na aldeia, em Trás-os-Montes, onde apesar de não ficarmos totalmente imunes, estaríamos mais afastados dos principais focos de contágio. Ainda cheguei a pensar nisso em voz alta cá em casa, mas fui logo trucidado e silenciado. Olha que ideia! Mesmo depois desse voto vencido, não deixo de considerar que seria uma melhor solução a prazo, para além de para mim ser o ideal: isolados de vizinhanças e longe dos ruídos, mais afastados de possíveis contágios involuntários. Tenho pena de poder estar a perder a oportunidade de verdadeiro retiro que tanto ambiciono. Vamos ver como decorrem os próximos dias e se não vai ser necessário repensar essa fuga...
[ escrito a 16 de Março ]

legitimidade e submissão

Fica também claríssima a importância do SNS, o único que verdadeiramente pode cumprir o direito de todos à saúde. A saúde pública, como a escola, são o que mais legitima o facto de nos submetermos ao poder de um Estado.
Serei sempre pelo fortalecimento do SNS, confio nos médicos e nos especialistas, entendo seus erros e testemunho o esforço e a boa-fé. Quero que os políticos estejam à altura e que saibam elucidar a população do quanto estes desafios competem a todos, por imperativos éticos estamos todos chamados a uma heroicidade que, por sorte, e na maioria dos casos, pede apenas que fiquemos em casa, algo que afinal passamos a vida a dizer que seria um sonho. Perante tão grave ameaça, que modo tão simples de lutar nos pedem.
[ Valter Hugo Mãe, in Jornal de Notícias, 15 de Março ]

enclausurado VII

animais sociais

Pelo que se percebe das reacções das pessoas um pouco por todo o lado, e mesmo pela minha ontogénica vontade de sair, somos mesmo animais sociais e não estamos minimamente equipados, nem física, nem psicologicamente, para sobrevivermos isolados do resto da humanidade. Só sabemos viver em comunidade e sentimo-nos, de facto, pertença a um qualquer grupo. Daqui decorrem, compreensivamente, atitudes e reacções tão diferenciadas perante uma experiência como esta que agora vivemos. Apesar de também fazer parte, excluo deste raciocínio a estupidez e a ignomínia humanas que, infelizmente, também se tem vindo a manifestar com alguma abundância.
[ escrito a 16 de Março ]

enclausurado VI

os meus pais

É sabido que este cabrão ataca com maior gravidade as pessoas mais velhas e que a maior incidência de vítimas mortais será nesses segmentos da população, pelo menos se mantiver as características que manifestou noutros países que nos antecederam.
Pois bem, as vésperas da chegada desta epidemia foram uma luta permanente com os meus pais para os convencer da gravidade e perigosidade deste vírus para as suas saúdes e vidas, uma vez que ambos têm tido problemas respiratórios e pulmonares nos últimos meses. Nem por nada quiseram resguardar-se e prescindir das suas rotinas de ir tomar café, comprar o jornal e o pão, ir ao hipermercado fazer compras semanais, ir à cabeleireira, multibanco, etc., etc.
Ando preocupado e assustado, principalmente, por causa deles. A preocupação é tanto maior porque, ainda agora, depois de já se terem mentalizado que têm que sossegar mais em casa, depois de eu lhes garantir que lhes levarei o que for necessário, teimam em relativizar o problema. O meu pai diz que estamos a exagerar, a minha mãe chora que não aguenta sentir-se fechada e isolada em casa. Não sabe o que fazer com a imensidão do tempo...
No meio desta pandemia eles são o meu desassossego.
[ escrito a 15 de Março ]

estado de excepção

Não me parece que dar sinais crescentes de alarme seja sempre o mais indicado. Se o povo consegue ser disciplinado, se não há motins, revoltas ou movimentos de desobediência às forças de autoridade, se não há greves e manifestações, se não há sequer a necessidade declarada de requisição dos hospitais privados, havendo total abertura de cooperação, se é possível limitar os movimentos das pessoas com a lei em vigor (que nem sequer esgotámos), porque precisamos que nos ponham na ordem? Merecia, quando isto passar, que nos deitássemos todos no divã. Outros povos resistem ao estado de exceção, nós desejamo-lo mesmo quando o poder não o pede.
Daniel Oliveira,  roubado  daqui...

enclausurado V

os miúdos

A Emília foi a primeira a saber que viria para casa, pois a sua faculdade fechou as portas dia 10 de Março por 15 dias, diziam eles. Regressou de Lisboa no dia 11 e desde então não mais saiu de casa. Teve alguma dificuldade em perceber a dimensão desta epidemia e, por isso, resistia à ideia de ficar fechada e dizia não entender o stress e o histerismo de toda a gente. Do alto dos seus dezoito anos, optimista e cheia de vontade de viver, parecia sentir-se imune a qualquer contágio. Entretanto, foi-se apercebendo e consciencializando da gravidade da situação em que estamos todos e agora é a primeira a não querer que se saia de casa. Está preocupada com a situação dos avós, ao mesmo tempo que é a primeira a dar os primeiros sinais de alguma saturação por estar confinada em casa.
O Rodrigo, como seria expectável, não percebe totalmente aquilo que está a acontecer. Para ele foi uma alegria imensa saber que não teria que ir à escola durante muitos dias, tantos que ele nem consegue alcançar. Ele é quem tem vivido melhor, pelo menos nestes primeiros dias, nestas condições... está nas suas sete quintas e não lhe falta ocupação e divertimento.
[ escrito a 15 de Março ]

nostalgia

Temos assistido, através da comunicação social e, principalmente, das redes sociais, ao comportamento dos indivíduos, não só em Portugal, como um pouco por todo o mundo, naquilo que é a habituação às novas rotinas que, ainda que em formas e intensidades variadas, a população mundial vai experimentando. Uma dessas formas de reagir ao isolamento social tem sido cantar, à janela ou varanda, a solo ou em coro, e uma das muitas imagens que nos chegou de Itália, talvez a primeira delas, foi esta. Comovido, fiquei logo agarrado a ela e tenho-a visto repetidamente, pois para além de todos os significados actuais e da força que manifesta, remete-me para a nostalgia de um tempo e lugar da minha infância e que, sei, não voltarei a experimentar... também na "minha" aldeia, em dias de grandes jeiras e depois do jantar reforçado, bem comidos e bebidos, os homens saíam para a rua escura e percorriam as canelhas e ruas cantando modas antigas, motivando quem estava em casa a vir à porta e, muitos, a juntarem-se ao grupo e à ronda.

enclausurado IV

organização

Os quatro fechados em casa quase há 48 horas e já se percebem algumas tensões e um ou outro problema que será preciso resolver. Tudo isto reforça aquilo que já antevia e que será urgente definir: uma organização ou um planeamento para os muitos dias que aí virão e em que estaremos nesta condição. Para além disso, é preciso construir um organigrama, para que cada um saiba aquilo que tem que fazer, como contributo para o bem-estar de todos e para manter uma relativa normalidade, disciplina e organização familiar.
Os miúdos já não saem de casa desde 11 de Março, a mãe deles desde dia 13 e eu, assim ficou estabelecido, sou o único com alforria deste aprisionamento, para os reabastecimentos necessários e para dar apoio aos meus pais que estão perto. Estamos a aprender a viver assim, 24 sobre 24 horas, juntos e confinados a estas paredes. Nunca nos acontecera, por isso, muito haverá para apreender e será, com certeza, um desafio para cada um de nós.
Mesmo a partir de casa, eu e a Andreia teremos tarefas e trabalho a realizar e, assim, poderemos ocupar parte das horas de cada dia nessas tarefas profissionais, mas ocupar as horas todas dos miúdos, já deu para perceber, será uma preocupação crescente e necessitaremos de alguma criatividade e imaginação para os mantermos saudáveis, equilibrados e tranquilos.
[ escrito a 15 de Março ]

16 março 2020

o naufrágio, uma metáfora

Na actual edição do Jornal de Letras, Amin Maalouf é entrevistado a propósito do seu ensaio mais recente: O Naufrágio das Civilizações. Entre muitas outras afirmações e ideias, transcrevo para aqui aquilo que mais me atraiu nesta conversa e que tem por motivação uma rica metáfora para os dias que hoje experimentamos.

A Humanidade metamorfoseia-se diante dos nossos olhos. Nunca a sua aventura foi tão promissora nem tão aleatória. Para o historiador, o espetáculo do mundo é fascinante. Ainda assim, temos de conseguir suportar o desespero dos nossos contemporâneos e as nossas próprias inquietudes.

O que caracteriza os tempos actuais não é uma tendência para grandes agrupamentos, mas a tendência para o desmoronamento e a desintegração.

O que mais me preocupa é a exortação a que sejam proibidas as notícias falsas. Porque, neste caso, temos de nos perguntar; quem tem a capacidade de determinar se uma notícia é verdadeira ou falsa? Os operadores das redes sociais? Os governos? Quem tem a requerida competência e a necessária integridade para distinguir, imediatamente, o verdadeiro do falso? Na minha opinião, a liberdade de expressão, mesmo que envolva riscos reais, continua a ser um mal menor do que a polícia do pensamento...

É verdade que o mundo não progrediu no sentido que o desejava. Por vezes, sinto que ele recuou, mas é uma sensação enganadora. Na História, nunca se volta bem ao passado. E mesmo quando temos a impressão de um retorno, temos de acreditar que enfrentamos uma situação nova, muito específica da nossa época, tendo a obrigação de a estudar cuidadosamente, para saber como "navegar" nas águas tumultuosas que atravessamos.

O mundo actual está à beira de um naufrágio, e podemos constatar isso em diversos domínios: uma nova corrida aos armamentos, o enfraquecimento das instituições democráticas, a crise de credibilidade de quase toda a gente, a nossa incapacidade de enfrentar os riscos climáticos - sem falar dos novos sustos que se apoderaram de nós nas últimas semanas... Face a estas ameaças, a nossa responsabilidade é permanecer lúcidos, não mentir e procurar soluções para sair do marasmo generalizado.

enclausurado III

o virus da globalização

Assistimos durante os últimos meses ao drama que este vírus provocou na China e nos outros países seus vizinhos, só que eram lá longe e chegava-nos através dos filtros das TVs e Jornais, por isso sentiamo-lo distante e nós, de alguma forma, salvaguardados. No íntimo existia a esperança de que a doença não chegaria cá. Mas não, a mancha silenciosa foi-se alastrando e aproximando, numa viagem rápida e impagável. Só quando percebemos que essa mancha invisível chegou e estava entre nós, resolvemos reagir. Ainda bem e a reacção deverá ser o mais radical e dramática, pois pelo que se sabe essa será a melhor forma de a combater e derrotar.
Agora que já cá está e já começou a escolher as suas vítimas entre os mais fracos, desprotegidos, aventureiros ou irresponsáveis, sabemos que mais dia menos dia vai começar a reclamar por vidas. Todos, ou quase todos, seremos suas potenciais vítimas. Saibamos protegermo-nos.
[ escrito a 14 de Março ]

lavar as mãos

Lavar bem as mãos (e a cara, já agora) é muito mais eficaz do que esfregar as mãos com um gel de álcool, mas as pessoas preferem os géis porque a verdade é que não gostam de lavar as mãos. (...) Porquê é que as pessoas não gostam de lavar as mãos?
Miguel Esteves Cardoso, in jornal Público de 15 de Março de 2020

enclausurado II

de voluntário a compulsivo

Aquilo que começou por ser voluntário, resultado da percepção e reflexão sobre as notícias que nos chegavam e que davam conta da situação da epidemia, agora pandemia, e me levaram a impedir que o meu filho fosse à escola nos últimos dias antes do encerramento total das escolas em Portugal, depressa se transformou, para todos nós, num enclausuramento compulsivo e obrigatório. Estou, estaremos todos, alertados para a sua necessidade e urgência, para os seus propósitos e para as suas consequências, não sabemos é quanto tempo ele poderá durar, nem muito menos sabemos se alcançaremos o seu fim. Ao mesmo tempo, as dúvidas e as questões sobre que futuro podemos esperar, durante e depois desta crise global, também nos assaltam o espírito. Consciente de que as desgraças não acontecem só aos outros, aquilo que desejo é poder chegar ao fim da tormenta e conseguir preservar a saúde daqueles que dependem de mim e dos que me rodeiam. Espero poder reunir e celebrar o facto de estarmos vivos, saudáveis e disponíveis para recomeçar ou reiniciar a vida.
[ escrito a 14 de Março ]

enclausurado I

abertura

Agora que estou fechado em casa com toda a família para um retiro forçado de duração indeterminada, eis que me encontro numa encruzilhada de sentimentos. Desde há longa data desejo retirar-me, isolar-me dos rostos familiares e dos lugares quotidianos. Fui a espaços e a custo, conseguindo experimentar essa sensação, momentânea e em diferentes locais, mas sempre de forma voluntária. Agora, e ainda quando passam poucas horas desde que aqui e assim estamos, novas sensações e percepções, daquilo que é a ausência do convívio com outras pessoas, ganham espaço em mim. Assim, e porque tenho a consciência de que estamos a viver algo novo, desconhecido e com desfecho imprevisível, o porto seguro também será este: a escrita de alguns dos momentos destes enclausurados dias.
[ escrito a 14 de Março ]

inesperado e inusitado

Numa das últimas aulas presenciais, antes do recolher obrigatório, um aluno de Epistemologia, depois de um período de reflexão e debate sobre ciência, tecnologia e suas evoluções e sobre as influências de ambas nas vidas quotidianas dos indivíduos, perguntou-me se os antropólogos atendem pessoas (?)... pergunta que eu nem sequer percebi, o que o obrigou a reformular a questão. O que ele queria saber era se os antropólogos dão consultas. Ok, entendi, mas que eu tenha conhecimento isso nunca aconteceu. Não é que eu não tenha já pensado no assunto, na medida em que a percepção da realidade que alguns indivíduos manifestam é deficitária e prejudica gravemente a saúde pública, umas consultas de civilidade, de cultura, de comunidade, de pertença e afins, não lhes faria mal nenhum e todos beneficiaríamos.

jornal de letras


Com esta edição, a número 1290, o jornal de Letras celebra os seus quarenta anos de existência. É de facto um projecto impressionante se tivermos em conta que estamos a falar de uma publicação periódica e de cariz cultural. Eu conheço o jornal há muitos anos e compro-o assiduamente há alguns anos. É uma das leituras obrigatórias em formato jornal e é sempre com alguma ansiedade que o vou buscar ao quiosque.
Está de parabéns o jornal, todos os seus colaboradores e, principalmente, o seu director e fundador, José Carlos de Vasconcelos. Nesta edição são vários os testemunhos que assinalam esta efeméride...

O JL é todo o contrário (do "fast food" e do sensacionalismo), afirmando-se como uma publicação de "slow food for thought" que proporciona aos seus leitores um espectro largo de artigos numa clara ilustração do papel da cultura na construção de sociedades participadas e na formação de cidadãos livres e esclarecidos.
Jorge Sampaio

Somos um país bem frágil na divulgação artística - no velho e antigo papel sobretudo - e a função do JL é, neste particular, cada vez mais de resistência. Um jornal cultural que se agarra com as mãos, preciosidade boa. E o tempo passa.
Gonçalo M. Tavares

O JL entre com esta edição, nos 40 anos de publicação ininterrupta. Repito o adjectivo: ininterrupta. Não é, por certo, o mais importante destes 40 anos de vida inquieta do JL. O que nos alimenta, aos seus leitores, é a qualidade dos artigos, o cada vez mais raro espaço e tempo de reflexão que são o preço a pagar pelo pensamento livre, a tremenda diversidade dos autores que preencheram estas páginas durante quatro décadas. Ainda assim, a obstinação de um jornal que nos vem parar às mãos, no dia certo, durante 40 anos, é razão para celebrarmos. Essa constância é das qualidades que mais falta nos fazem nas artes e na área da Cultura em Portugal.
Tiago Rodrigues

No meio disto tudo, o JL a tudo resistiu, tudo fazendo para não envelhecer, para acompanhar Portugal e a Democracia Portuguesa. E conseguiu. Pela excelência de todos o que lhe deram 40 anos de auto-biografia de Portugal. Pela singularidade do percurso do seu director e "alma-mater". Ele próprio vivendo e contando muito do que importa a essa auto-biografia. Há muitas outras? Há. Há muitas outras como a do JL? Não há. Porque mais ninguém reuniu tantos tão bons, durante tanto tempo, a falarem-nos do seu mundo interior e exterior, assim falando de Portugal. E falando como só eles sabem falar.
Marcelo Rebelo de Sousa

Recordo apenas que a literatura, a arte e a cultura portuguesas, e em língua portuguesa, são o nosso grande tema e foco de atenção. Visando não só, ou não tanto, divulgar como fazer conhecer, compreender - e, mais ainda, quanto possível, gostar, ou mesmo amar. E por isto mesmo colocamos em primeiro plano a criação, a obra criada e os criadores, pretendendo que tenha tal primordial finalidade em vista o que sob várias formas se escreve e publica.
José Carlos de Vasconcelos

01 março 2020

ao jeito de lapantim

Os homens são animais e alguns fazem criação dos seus semelhantes.
(Peter Sloterdijk, in o aberto, de Giorgio Agamben)

Encontrei esta citação no livro referido e não pude segurar um sorriso. É que me apeteceu, instintivamente, trocar a palavra animais da equação e trocá-la por outros qualificativos que também poderiam significar correctamente o que o autor pretendia, ou então apenas e só aquilo que eu julgo adequar-se...
- os homens são bestas e...
- os homens são anémonas e...
- os homens são calhaus e...

27 fevereiro 2020

esbulho e abuso

A propósito da oportuna e necessária iniciativa dos partidos políticos, que se preparam para votar na Assembleia da República contra as exorbitantes comissões que os bancos cobram aos seus clientes, o editorial do jornal Público de hoje, assinado por Manuel Carvalho é elucidativo sobre esta realidade:

cortar o pêlo

Aproveitando o último dia de férias escolar, ontem foi dia de ir ao barbeiro cortar o pêlo ao meu filho e, já agora, o meu também. Estávamos os dois a ser atendidos, lado a lado, quando entraram mais dois clientes que se sentaram à espera de vez. Um deles, o mais velho, quando se apercebeu que eu seria o pai daquela criança, questionou:
- É seu filho?
- Sim. Respondi.
- Já não é fácil encontrar pai e filho juntos a cortar o cabelo.
Sorri e, lembrando-me da minha infância, disse-lhe:
- Eu lembro-me de ir com o meu pai quando era miúdo. E lembro-me que o barbeiro era em Gaia, ao lado do café Angola, no início da rua João de Deus, do lado esquerdo... Era aí que o meu pai ía e levava os dois filhos.
Boa memória esta, que me levou de imediato a reflectir: Será que o meu filho, um dia, se lembrará destas vindas ao "Cristal"? Espero que sim.

(até nisto sou parecido com o meu pai: somos clientes fidelizados)

chamada de comunicações


Encontro de antropólogos galegos, portugueses e afins. Eu vou lá estar e vou levar comigo os filigraneiros de Gondomar.

26 fevereiro 2020

o virus corona

Concordo com aqueles que manifestam alguma ponderação e senso em relação a esta epidemia: nem pessimismo alarmante, nem optimismo irresponsável, mas a verdade é que o vírus está a caminho de Portugal e vai-se aproximando a grande velocidade. Não sei qual será a dimensão do problema e se seremos capazes de responder eficientemente à doença e suas manifestações. Parece-me evidente que os mais desprotegidos e susceptíveis ao vírus serão os portugueses com maiores carências (de saúde e económicas) e, por isso, considero que, para minimizar estragos e contrariar contaminações, o primeiro e grande esforço do Estado e de seus intervenientes deverá ser junto destas populações. O receio que me assalta é a habitual atitude passiva das entidades nacionais, de actuações reactivas, em vez de pró-activas, em situações de alarme e eminente perigo social. Saibamos proteger-nos.

19 fevereiro 2020

direito a poder escolher morrer

É um direito que assiste a cada um de nós. A liberdade única e intransmissível de podermos escolher não viver mais. Acredito na racionalidade do ser humano e na sua capacidade e autonomia individual. Não posso aceitar que as crenças, os dogmas ou as morais de terceiros condicionem ou impeçam essa minha autonomia e direito a poder escolher. Não sei o que me espera no processo de envelhecimento, desejo nunca ter que tomar uma decisão dessas, mas não abdico de poder ter essa opção, caso algo de extraordinário e cruel me aconteça.
É por isto que nem hesito um segundo perante a discussão que decorre na sociedade portuguesa sobre a despenalização da eutanásia. E claro que a Assembleia da República tem toda a legitimidade para legislar sobre o assunto. Curiosa é a atitude daqueles que publicamente se manifestam contra tal iniciativa e recorrem aos mais inauditos meios para atingir os seus fins. Atenção, eu aceito que a questão é complexa e respeito todos aqueles que por constrangimentos morais ou religiosos são contra a iniciativa. Aquilo que não aceito é, por exemplo, os mesmos que em 2018 votaram contra as iniciativas legislativas e venceram essa votação na Assembleia República, sem exigirem qualquer referendo, agora, aqui del rei, que é necessário um referendo popular. Conversa, hipocrisia demonstrativa de que se servirão de qualquer meio para atingir os seus fins, ou seja, impedir este processo.
Em todo o caso, tenho por certo que em Portugal a eutanásia será uma realidade, se não amanhã, de certeza, depois de amanhã. Ainda bem.

livros, os meus livros, que não lerei

Tendo a consciência que não escreveria tão bem, logo, não conseguiria comunicar ou manifestar de melhor forma, transcrevo excertos de um texto de Arturo Pérez-Reverte, que aqui encontrei e gostei.

Soy viejo cazador de libros, con modales e instintos de serlo. Así que esta tarde, como siempre, me muevo por los puestos con el ojo atento y los dedos rápidos para llenar el zurrón, tan dispuesto como cuando hace cincuenta años llegué a Madrid y empecé, libro a libro, a construir la trinchera en la que vivo y sobrevivo: la biblioteca que creció poco a poco, primero para reconstruir la de mis abuelos y mi padre, y luego haciéndola más personal y propia. La que me permitió comprender el mundo complejo y violento por el que caminé desde muy joven, y que ahora, multiplicada en centenares de estantes y miles de libros, me permite digerir cuanto viví. La que, combinada con lo que recuerdo e imagino, me ayuda a contar historias e interpretar el mundo. Incluso, a soportarlo cuando no me gusta. Esa biblioteca que es lugar de trabajo, refugio y, como dije muchas veces, analgésico; de ésos que no eliminan las causas del dolor, pero ayudan a soportarlo.

(...)

A veces, alguien que ve mi biblioteca pregunta si he leído todos esos libros. Y la respuesta siempre es la misma: unos sí y otros no; pero necesito que estén todos ahí. Una biblioteca es memoria, compañía y proyecto de futuro, aunque ese proyecto no llegue a completarse nunca. Una biblioteca amuebla una vida, y la define. Raro es no advertir el corazón y la cabeza de un ser humano tras un repaso minucioso a los libros que tiene en casa, o que no tiene. Por eso no me lamento por los que no llegaré a leer. Cumplen su función incluso quietos, silenciosos, alineados con sus títulos en los lomos. Puedo abrirlos, hojearlos, recorrerlos despacio, meterlos en la mochila para un viaje. Y aunque muchos no llegue a leerlos jamás, habrán cumplido su misión. Su noble cometido. Cuando comprendí que nunca leería todos los libros que ansiaba leer, y acepté esa realidad con resignada melancolía, cambió mi vida lectora. Se hizo más plena y madura, del mismo modo que, en la primera guerra que conocí, asumir que yo también podía morir cambió mi forma de mirar el mundo. Los libros que nunca leeré me definen y me enriquecen tanto como los que he leído. Están ahí, y ellos saben que lo sé. Si sobreviven al tiempo, al fuego, al agua, al desastre, a la estupidez del ser humano, un día serán de otro. Y lo serán gracias a mí, que tuve el privilegio de rescatarlos de sus miles de naufragios y unirlos a mi vida.

a quem interessar...

17 fevereiro 2020

vergonha

O futebolista Marega enxofrou-se e levou com o cartão amarelo do árbitro. Marega pediu para sair do campo. Da bancada da claque: "Macaco!" Marega continuou enxofrado e a querer sair do campo. Daquela bancada da claque: "Chimpanzé!" Volto à minha tese: depois de tanto ano com os negros a demonstrar que são tão bons, tão maus e tão assim-assim quanto os brancos, houve, no estádio de Guimarães, ontem, uns sub-humanos a serem o que são.
Quanto aos homens vi-os de dois tipos. Árbitros de cabeça perdida, dirigentes e treinadores de cabeça perdida, adeptos (dos dois clubes) de cabeça perdida, comentadores televisivos de cabeça perdida, polícias de cabeça perdida e jogadores do Vitória e do FCP de cabeça perdida, isso de um lado. Do outro, vi o Marega, outra vez enganando-nos com as aparências, gesticulando e gritando, e serenamente fazendo o que havia para fazer: assim não jogo.
Ah, se Pinto da Costa se levantasse e se fosse embora da bancada de honra! Ah se o guarda-redes do Guimarães abandonasse o campo agarrado ao companheiro adversário! Ah se o árbitro Luís Godinho rasgasse o cartão amarelo e o vermelho também, e mostrasse a Marega o cartão branco, o de fair-play, como há dias outro árbitro mostrou a um jogador infantil e nobre, que o avisou ser falso um penálti contra o adversário! Ah se a multidão saísse do estádio quando o Marega entrou no balneário! Ah se o presidente do Guimarães chorasse! Ah se um radialista relatasse: "Marega saiu e eu calo-me"! Ah se os gestos claros e límpidos de Marega causassem a vaga que mereciam...

Ferreira Fernandes, roubado daqui.

12 fevereiro 2020

sindicalizados

Encontrei no blogue Entre as brumas da memória um texto (julgo que um artigo), do economista Ricardo Paes Mamede (RPM), sobre a evolução do sindicalismo em Portugal e o seu estado actual. Ao contrário do que aconteceu nas últimas décadas em Portugal e demais países desenvolvidos, tem vindo a merecer uma crescente atenção e que merecerá toda a nossa preocupação. Escreve RPM que um relatório recente da OCDE afirma que a proporção de trabalhadores sindicalizados em Portugal caiu de 60,8% em 1978 para 15,3% em 2016, o que representará uma das maiores quedas entre os países analisados. Contudo, segundo esse mesmo relatório, a taxa de sindicalização em Portugal mantém-se próxima da média da OCDE e só passou a ser inferior a partir de 2014. É certo que o mundo, as sociedades e as relações de trabalho mudaram muito desde a década de setenta do século vinte, mas isso não justifica na totalidade as percentagens apresentadas, ainda que possamos encontrar várias causas para tal evolução, tal como descreve RPM:

Há várias tendências internacionais que ajudam a explicar a queda nas taxas de sindicalização nas economias mais avançadas: a desindustrialização, o crescimento das formas atípicas de trabalho, a desregulamentação das relações laborais, ou a pressão concorrencial de países com níveis reduzidos de salários e protecção dos trabalhadores. Todos estes e outros factores dificultam a capacidade de organização e de mobilização dos sindicatos, ao mesmo tempo que reduzem o seu poder negocial.


É minha opinião que a percepção generalizada que os portugueses, trabalhadores ou não, têm dos sindicatos nacionais é negativa, corporativista e anacrónica. Sem querer ser simplista ou minimalista na análise, tendo a concordar com esta percepção, pois é aquilo que, muitas vezes, nos chega desse universo: dirigentes envelhecidos que se perpetuam nos cargos, com discursos repetidos e gastos, sem aparente ou perceptível ligação com a realidade dos cidadãos e dos trabalhadores.
As sociedades, em geral e as relações laborais, em particular, precisam da existência dos sindicatos, enquanto representantes com voz activa e poder negocial naquilo que são a contratação colectiva e a concertação social. Ao contrário do que muitos pretendem, eu quero a sua presença nos centros de negociação e decisão, mas sindicatos com rostos e discursos novos, actualizados e que adequem a sua intervenção e sua comunicação ao presente e ao futuro das novas gerações de trabalhadores.

07 fevereiro 2020

tormenta

Dias difíceis estes. Acabo de sair do campo de batalha derrotado, física e psicologicamente, sem ânimo ou vontade de seguir caminho. Desistir seria sempre mais fácil e cómodo. Desta vez o tombo foi grande e doeu (está a doer). Gostava que estes dias passassem céleres, pois sei que serão bons conselheiros e que me irão fazer arrebitar. Esfarrapado, mantenho que o meu caminho é escrever. Continuar a escrever será o porto de abrigo para a tormenta que atravesso.

aprovado

Está aprovado o Orçamento de Estado, o primeiro deste governo minoritário do PS de António Costa e companhia ilimitada. Pela atitude arrogante, sobranceira e chantagista do Primeiro Ministro e demais Ministros nas negociações, debates e até ao momento da votação final, este orçamento nunca deveria ter sido aprovado. Principais culpados, toda a esquerda que se acobardou e teve medo de provocar a queda do governo. Bastaria a questão do IVA na electricidade para não o aprovar. O PS esticou a corda e venceu, derrotou todas as oposições. Ficamos todos a perder.

apaguem a luz

Corrijam-me se eu escrever asneira ou mentira: então o sr. Primeiro Ministro afirmou que a melhor forma de conter a factura da electricidade era não ligar tanto a luz, não aquecer tanto as casas e não baixar o IVA da electricidade de 23% para 6%. Foi mais ou menos isto, certo?
Muito bem, concordo. Acho até que a grande maioria dos portugueses nem deveria ter acesso a esse bem, luxuoso e supérfluo, que é a electricidade. Essa coisa deveria estar disponível apenas para alguns, aqueles poucos, os mesmos de sempre, que dão provas de poderem pagar o que for por esse luxo.
Hipócritas! Como é que aceitamos que a electricidade não seja considerada um bem essencial? Poder acender luzes, poder aquecer casas não é um luxo, é uma necessidade e deveria ser acessível para todos nós.
Sim, o IVA da electricidade deveria ser 6% e não 23%, independentemente, do prejuízo em sede de orçamento de Estado.
Não, o IVA da electricidade não vai descer. Houve uma maioria de deputados que consideram que está bem assim e que quem não pode pagar deve manter-se no escuro e com frio. Bem hajam.

Galiza, a cervejaria


Pela primeira vez na vida fui comer ao Galiza, no Porto. Aproveitando um jantar-reunião, foi sugerido lá irmos em solidariedade com os seus funcionários que, como é sabido, estão numa situação complicada e assumiram a gestão da empresa, substituindo os donos que pretendiam encerrar a casa. Muito bem, gostei da iniciativa e senti-me confortável com a atitude solidária. O jantar correu bem, trabalhámos e confraternizámos. Todos pediram francesinha com cerveja. Esta era muito boa (de Leça), mas a dita francesinha não era especial, não me convenceu. Lamento, mas não volto a repetir. Gostei do atendimento simpático e prestável e a sala, apesar da decoração antiga, é aprazível.

mediascape: desinformação

Então a ERC (Entidade Reguladora da Comunicação Social) aceitou e registou como "informativo" um site de propaganda e fake-news?!... Pelos vistos! Assim se promove a desinformação generalizada do país e seus cidadãos. Muito bem feito, sim senhores!

05 fevereiro 2020

aproximações e afinidades

A correspondência é um monólogo a dois; o diário uma correspondência a várias vozes. Ambos apresentam, contudo, um traço comum: são formas diferenciadas de autobiografia, porquanto a procura que lhes subjaz obedece a uma autêntica demanda de identidade.
(Marcello Duarte Mathias, in Colóquio Letras nº 202 - Setembro/Dezembro 2019)

04 fevereiro 2020

"we have no more beginnings"


Morreu ontem com 90 anos George Steiner. Pensador, filósofo e crítico literário, foi e é um dos maiores sábios da contemporaneidade. Conheço parte considerável da sua obra - ensaios, reflexões e literatura, e tenho a maior admiração pelo seu conhecimento e pelo seu percurso académico. Com o seu desaparecimento, desaparece também uma geração de pensadores que percorreram todo o século XX e as duas primeiras décadas do XXI.
Eu sei em que contexto ele um dia escreveu: we have no more beginnings, mas prefiro continuar a acreditar que nós (cada um de nós e nós enquanto comunidade ou espécie) teremos sempre a possibilidade de novos começos. Assim possa ser.