21 novembro 2025

a minha paisagem

"Eu era paisagista e as paisagens significavam muito para mim. Nos últimos 40, 50 anos, tenho vivido e escrito romances em locais onde posso ver a paisagem. Actualmente, estou em Nova Iorque, a leccionar em Columbia, e o meu apartamento tem vista para o rio Hudson. O meu apartamento em Istambul também tem vista para a entrada do Bósforo. As paisagens têm um efeito profundo em mim. Estimulam a minha imaginação e fazem-me pensar no mundo em geral. [...] Paisagem é uma palavra-chave para mim. Também a uso como metáfora." (Orhan Pamuk, in Ipsilon - jornal Público, 21 Novembro 2025)

Leio esta passagem de uma entrevista ao Prémio Nobel da Literatura de 2006, o turco Orhan Pamuk, e fico deprimido ou infeliz, não sei bem. Não é inveja das suas paisagens, porque não as desejo, mas sim o profundo desejo de ter para mim uma paisagem que me tranquilize, que me inspire e, principalmente, que me faça ficar, permanecer. A minha paisagem actual é uma bomba de gasolina da BP...

merdificação

Não conhecia a expressão, nunca a ouvira ou lera, mas porque gostei dela, passará a fazer parte do meu léxico. Encontrei-a hoje no Ipsilon do jornal Público, numa peça-entrevista a Cory Doctorow, um activista pela Internet e pelos direitos digitais, autor de vários livros, que passou recentemente por Lisboa, para discursar na Web Summit. Inventou este termo "enshittification" em 2023 e trata-o como uma doença... "um fenómeno em que as plataformas deixam de ter o utilizador como prioridade e passam a focar-se no lucro. Perdem qualidade e entram em decomposição, mas continuam vivas, paradoxalmente". A merdificação é um processo e o autor analisa-o:
"1- Primeiro, as plataformas começam por ser boas e úteis para os utilizadores;
2- Assim que esses utilizadores ficam agarrados, as plataformas abusam dos utilizadores para que sejam mais vantajosas para os seus clientes empresariais;
3- Depois, as plataformas abusam desses clientes para ficarem elas próprias com os lucros;
4- Por fim, transformam-se num monte de merda... passam a oferecer o mínimo possível que seja suficiente para manter os utilizadores colados uns aos outros, e os publishers e anunciantes colados aos utilizadores."
De facto, vivemos tempos de merdificação, e não é só na internet. Vivemos num mundo em que o verbo que se conjuga é merdificar. A merdificação está generalizada e é colectiva, ou seja, andamos a borrar a cara com merda uns aos outros.

desalento, talvez

Chegado a esta idade, e às suas circunstâncias, perscrutando o mundo que me rodeia e reflectindo sobre o estado das "coisas", fico deprimido e com vontade de abdicar da inconformidade e resistência, atitudes em que tenho militado desde que me conheço. Numa simples analogia, sinto que tenho existido em contra-mão daquilo que é o sentido em que a maioria vive.
Durante as mais de três dezenas de anos que levo de activismo, primeiro na dimensão associativa, depois política e, por último, social, não deixei de acreditar, em cada momento, que era possível um outro mundo, uma outra sociedade. Hoje, agora, já não sei se será bem assim. Pode, e espero, ser um estado de alma e algo apenas conjuntural e amanhã voltarei a acreditar num amanhã promissor. No entretanto, e já há cerca de meia-dúzia de anos que a Antropologia é o meu enfoque e será através do seu crivo que manterei a atitude activista possível.
A vontade e o interesse pelo trabalho de campo, pelo mundo rural, associados à paixão pelo território transmontano, tem-me ocupado o tempo e os sentidos. É e será por aqui que vou ficar. Em todo o caso, também sei, em e com consciência, que jamais deixarei de me preocupar por tudo o que diz respeito ao colectivo, à comunidade e ao seu futuro.

19 novembro 2025

o menor esforço impera


Aqui está algo de superlativa importância, mas que não merece a devida, ou qualquer atenção de ninguém. Impressiona a quantidade e variedade de alimentação ultraprocessada disponível nos super e hiper-mercados. Se isso acontece é porque são comprados e consumidos (lei da oferta/procura), beneficiando as grandes empresas e os seus lucros corporativos, e prejudicando em muito a saúde dos indivíduos que, cada vez mais, consomem e fazem deles a sua dieta. Naquilo que é a minha experiência, há muito me apercebi desta realidade e, procurando etnografar, quando dizemos que aqui em casa fazemos puré da forma tradicional (cozer batatas, esmagá-las, juntar leite e manteiga, bater bem até ficar homogéneo,...), até se riem do trabalho e tempo desnecessários, pois há no mercado soluções bem mais fáceis e rápidas de o fazer; com o esparregado a mesma coisa, e com a maionese, e com massas (lasanhas, canelones, etc.). É bem mais fácil ir ao supermercado e comprar as refeições já confeccionadas e prontas a comer. Enfim, o princípio do menor esforço impera, acrescentando valor às grandes empresas globais e acrescentando graves e crónicos problemas de saúde e comorbidades aos consumidores. Excelente artigo, hoje no jornal Público.

17 novembro 2025

vamos LER


Agora que, dizem, vem aí o frio de final de Outono, chegou a revista LER de Verão. Portanto, numa espécie de Verão de São Martinho, temos leitura boa para as horas que aí vêm. Mais vale tarde que nunca, dizem.

13 novembro 2025

Cláudia e Mário

Hoje viajei até ao concelho de Chaves para gravar mais um episódio do meu podcast: "Novas Conversas Rurais". Nada, nem ninguém, me preveniu para a recepção que este casal me dedicou. Simpatia e afectividade, foram de uma amabilidade sem igual. Depois da gravação, e quando a hora de almoço já tinha passado, convidaram-me para almoçar com eles e, num ápice, deram-me a provar várias iguarias criadas pelo Mário e servidas aos clientes que os visitam. Não tenho palavras para descrever tudo aquilo que o meu palato sentiu, mas aquilo que de melhor trouxe comigo, vou guardar e quero aqui registar, foi a dimensão humana que a Claudia e o Mário demonstraram, com simplicidade, empatia e disponibilidade total para me proporcionar um momento único. Adorei conhecê-los, conversar com eles e conhecer o seu projecto de vida. Vou regressar e não vai demorar muito até isso acontecer.

Transcrevo aqui a introdução que escrevi para a nossa conversa...

[ Conheci-os através das palavras de Alexandra Prado Coelho e de uma reportagem que realizou no suplemento Fugas do jornal Público, sobre o paraíso que a Cláudia Campos e Mário Neichel encontraram em Trás-os-Montes, isto depois do desencanto com a cidade, do sonho, da intensa procura pelo local ideal e do caminho que percorreram até aqui chegarem a Redondelo.
Ela, a Cláudia, nada e criada na cidade Invicta, fez o curso de jornalismo na Escola Superior de Jornalismo do Porto, mas rapidamente percebeu... ironia do destino, afirma... que seria na restauração o seu futuro.
Ainda na Invicta abriu dois bares e teve um pequeno restaurante que, às tantas não por acaso, e agora quem usa de ironia sou eu, reminiscências do míster de jornalista, tinha por nome “Sopa de Letras”.
Mais tarde, lá para 2009, ruma a Barcelona para fazer formação de alta cozinha, na prestigiada Escola de Cozinha e de Restauração Hofmann e acaba por ir ficando, procura trabalho e, numa encruzilhada imprevisível, é o pai de Mário que a acolhe e lhe dá trabalho no afamado restaurante Neichel, onde acaba por conhecer Mário...
Este, o Mário, catalão de Barcelona, é formado em Cozinha e iniciou a sua arte no restaurante Neichel, casa familiar, mas foi tendo outras experiências que muito contribuíram para o seu conhecimento e para a sua competência. Entre outras, diz com satisfação, conheceu as cozinhas do Celler can Roca, do Mugaritz, do Martin Berasategui e do Nando Jubany.
Apesar de ter crescido nesses ambientes de alta gastronomia, os quais considera terem sido uma excelente escola, cedo percebeu que o seu futuro não passaria por aí, nem tão pouco pela manutenção do legado familiar, a casa Neichel, acusando e fugindo da pressão e da carga de trabalhos que esse tipo de cozinha acarreta. Depois, sempre presente, a ideia da fuga da cidade e do urbano em busca de um contexto ou ambiente rural, sentindo a terra e estando próximo e em contacto directo com os produtores.
Regressando à tal encruzilhada imprevisível, foi aí que perceberam e reconheceram um no outro as ideias, as vontades e objectivos que afinal partilhavam. Assim, nessa encruzilhada, escolheram um caminho, e regressando às palavras de Alexandra Prado Coelho: “o caminho deles e colocaram a casa e o pequeno Marc às costas e partiram para longe das grandes cidades e para perto de um mundo que já só existe em alguns lugares”. ]

05 novembro 2025

mais cedo que tarde

No dia 29 de Julho publiquei aqui um texto a que dei o nome de "modas e resistências", no qual partilhei a minha percepção sobre a mudança de paradigma na indústria automóvel, de motores a combustão para motores eléctricos e da minha fundamentada resistência a esta nova tecnologia. Terminei esse mesmo texto afirmando que "se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina."
Pois bem, o mais cedo que tarde aconteceu. Vendi o carro que tinha desde 2013, um Golf Plus, e comprei um novo (semi). Ao contrário do que tinha acontecido na compra anterior, onde não foi propriamente uma escolha, mas sim uma oportunidade de negócio, desta vez a compra foi precedida de reflexão e ponderação sobre qual a melhor opção para a minha/nossa vida.
Depois de algumas visitas a diferentes stands e marcas, de comparações estéticas e financeiras, e debates familiares, acabámos por decidir comprar um Volvo, que fui buscar à JOP Gaia no dia 8 de Outubro. O critério decisivo foi a Andreia o ter considerado, dentro daquilo que era a nossa capacidade financeira, o automóvel mais bonito.
Tenho o Volvo há quase um mês, pouco ando nele, só a espaços e quando somos mais de dois para viajar é que sai da garagem. Nunca tinha comprado um Volvo, mas desde muito novo, talvez desde os vinte anos, me habituei a conduzir essa marca... a empresa em que trabalhei durante praticamente toda a década de noventa do século XX, tinha na sua frota vários Volvos: 440, 460, 850, 850 T5, entre outros. Sempre gostei da Volvo, pois eram bons carros e transmitiam-me fiabilidade e segurança.
Agora tenho um Volvo. Eu gosto do carro e até me sinto confortável dentro dele, mas não consigo, pelo menos por enquanto, libertar-me de um certo incómodo... precisarei eu de tanto carro?
E, tal como já antecipara, a opção eléctrica não foi sequer equacionada.

racismo de inteligência

Sirvo-me do conceito de Pierre Bourdieu "racismo de inteligência" (1978), para me indignar, uma vez mais, com as recentes declarações da ministra da saúde, Ana Paula Martins, sobre a morte de uma mulher migrante, grávida, e do seu recém nascido, num hospital de Lisboa. Ana Paula Martins, acossada, incapaz de dar resposta aos problemas existentes no SNS e impotente perante o mais que aparente descalabro nos serviços hospitalares, revelou-se, outra vez, afirmando algo como...

"Casos como este dizem maioritariamente respeito a grávidas que nunca foram seguidas durante a gravidez, que não têm médico de família... são recém-chegadas a Portugal, com gravidezes adiantadas. São grávidas que não têm dinheiro para ir ao privado, grávidas que algumas vezes nem falam português e que não foram preparadas para chamar o socorro. Por vezes, nem telemóvel têm."

Esta declaração, para além da ofensa descarada à desgraçada que faleceu, é uma expressão clara e sem qualquer dúvida de um verdadeiro sentimento de desprezo e indiferença pelo sofrimento alheio, uma unívoca expressão de racismo de inteligência que tão bem caracteriza o racismo de classe dominante, culpabilizando a condição de pobreza, de ignorância e analfabetismo dos indivíduos pelos seus trágicos destinos. Ou seja, a inaptidão social destes cidadãos, sejam nacionais ou migrantes, condena-os à eterna exclusão social, ao sofrimento e, até, à morte.

27 outubro 2025

caixa de sapatos

"Uma coisa é a casa onde vivemos. Ninguém tem de mexer nela. Outra coisa é a ideia de que temos o direito de ter mais casas do que aquela em que vivemos, como um instrumento para extrair rendimento. Uma segunda casa não é um par de sapatos. Uma primeira casa é mais parecida com um par de sapatos, é essencial. Uma segunda não é. A segunda casa é um investimento e, como todos os investimentos, tem de ser sujeita a regras. Sempre se confundiu a posse de uma casa com a propriedade privada enquanto instrumento de acumulação de capital, e esses conceitos devem ser distinguidos."
(Nuno Travasso e Simone Tulumello, in jornal Público, 27/10/2025)

26 outubro 2025

ao espelho...


Notícia do jornal Mensageiro de Bragança, de 23 de Outubro de 2025.

21 setembro 2025

boda de antanho

Ainda deste Verão, transcrever aqui episódio que partilhei nas redes sociais:

"Ontem, dia 23 de Agosto de 2025, participei como convidado, numa boda peculiar. A sensação foi ter viajado no tempo e ter regressado a um pretérito conhecido. Num pequeno povo da Sanábria, fim de tarde, encontro marcado na casa da família. Grupo de vinte a trinta convidados, caminhámos com os noivos até pequena capela num ermo afastado da povoação, onde nos aguardava à porta o sacerdote. Cerimónia simples e rápida. Descontraídos e depois de esperarmos que o padre fechasse a capela e nos acompanhasse, regressámos à mesma casa... durante este percurso, os noivos que seguiam na frente foram brindados e felicitados pelos habitantes daquela pequena localidade. O copo de água foi servido na rua, numa espécie de continha abrigada, anexa à casa. Ementa farta e variada, confeccionada por mãos amigas. Ambiente tranquilo, acolhedor e muito bem disposto, acompanhado por momentos musicais que alguns convivas foram protagonizando e que se estenderam pela noite dentro. vim de lá, altas horas da noite, feliz e com a sensação de ter vivenciado um momento único, replecto de anacronismo difíceis de encontrar em pleno século XXI."
(Bragança, 24 de Agosto de 2025)

enfim o Outono

No último dia de Verão, o de 2025, quero celebrar a chegada do magnífico, colorido, olfativo e divertido Outono. Mas acima de tudo, importa-me assinalar o alívio pelo fim do Inferno que é sempre o Verão. Com a idade a avançar tenho cada vez menos paciência e tolerância para com os terrores da época estival. Bem sei que é um problema pessoal e intransmissível, mas a alegria de sentir a temperatura a descer, a cacimba alvoral e o vento farto e frontal, dão-me ânimo para os dias que aí vêm. Como que numa transição para os frios e tremores do Inverno, desfrutemos dos prazeres outonais.

campeões mundiais

Nestes tempos em que a reacção saiu definitivamente do armário e perdeu a vergonha ou pudor de se afirmar racista e xenófoba, uma dúvida assalta-me a mente: como se sentirão perante o sucesso desportivo de imigrantes que, com as nossas cores nacionais, vencem tudo e são os melhores do mundo, como aconteceu esta última semana, com as medalhas de ouro de Isaac Nader (filho de um marroquino), nos 1500 metros em Tóquio, e de Pedro Pablo Pichardo (nascido em Cuba), no triplo salto? Vibrarão com estas conquistas e vitórias, ou sentirão desprezo, indiferença e até raiva inconfessáveis? Este seria o momento ideal para os confrontar e questionar publicamente sobre estes factos. Posso estar enganado (não estou), mas a maioria deles acobardar-se-ia e fugiria para o remanso dos seus nichos obtusos e medievais, onde em matilha carpem os seus ódios, e de onde jamais deveriam poder sair.

18 setembro 2025

presentes envenenados

Depois de largos meses ausente, numa manhã desta semana, regressei ao espaço Fórum de uma Fnac, onde há muito gostava de estar e ficar. Para esta manhã levava duas ou três tarefas na mente, sendo que terminar a leitura de um livro de crónicas sobre agricultura era a principal, pois o convite para participar no meu podcast já seguiu para o autor.
Estava eu entretido nessa leitura quando, não muito depois, se sentam três senhoras na mesa ao lado. Eu diria que todas septuagenárias, de boa e cuidada aparência e, pela conversa, adivinho que seriam professoras. Falaram muito e sobre muitas coisas diferentes, mas a minha atenção despertou quando o tema foi a oferta de vouchers de estadias, jantares e actividades várias, concordando as três que esses são péssimos presentes e que, dando exemplos, todas as situações que tiveram correram muito mal. Aí, o meu pensamento e reflexão acompanhou a conversa delas...
A mim, a nós, também já nos ofereceram desses presentes, mas até ao presente não usufruímos de qualquer um deles, nem de qualquer uma dessas experiências. Estarão algures, no fundo de uma gaveta, a perder validade... Aliás, tentei uma ou outra vez fazer reservas em hotéis, servindo-me desses vouchers e nunca consegui. Sei também, por experiência de amigos e familiares, que o tratamento a esses clientes, seja em hotéis ou restaurantes, é sempre negligenciado e, se possível, evitado. Portanto, esses produtos muito bem produzidos e embalados em escaparates, apetecíveis aos sentidos, são sempre presentes envenenados e, por isso, há muito deixei de sequer ponderar ofertá-los.

04 setembro 2025

"depois de casa roubada, trancas à porta"

A tragédia de ontem em Lisboa, com o elevador da Glória, é daqueles episódios ou acontecimentos que, apesar de imprevisíveis, poderiam muito bem ser evitados. Neste dia seguinte, numa atitude bem portuguesa, reflectida na expressão popular que titula este texto, o Presidente da Câmara Municipal, Carlos Moedas, por "prevenção", mandou suspender as operações nos demais elevadores e equipamentos similares da cidade. Claro que ainda muito ruído vai haver, muito se vai dizer e escrever sobre o sucedido, sobre culpas e culpados, mas teremos sempre que esperar pelo fim das investigações para, esperamos e desejamos, haver responsabilização e responsáveis. No entretanto, e porque é algo que, empiricamente, qualquer transeunte, morador, visitante ou turista, pode verificar ao deambular pela cidade de Lisboa, este acidente foi uma consequência dramática daquilo que é a voragem centrífuga do turismo, ou seja, os espaços públicos, as normas e regulamentos municipais, os patrimónios e os transportes públicos, estão cativados pelas dinâmicas e lógicas do turismo. A hegemónica turistificação da cidade obrigou a uma dedicação exclusiva de estruturas e infra-estruturas, uma exigência que testa a capacidade de recursos, equipamentos e de pessoal. Se houve ou não falta de manutenção, se houve ou não negligência técnica, ou mesmo humana, esta tragédia é grave demais para não haver culpados e responsáveis. Que, definitivamente, este horror sirva para memória futura.

03 setembro 2025

diferença

A mais que aparente fragilidade de uma folha de papel em branco supera-se quando nela inscrevemos qualquer diferença, uma ambição ou desejo que seja, para o tempo que há-de vir. Registemos então.

29 agosto 2025

espantado

Quando nos preparamos para regressar à Invicta e a casa, é tempo de reunir (adquirir) o que de novidade local/regional se encontra em escaparate. Aproveito uma ida a Vila Boa, para dar um salto a Vinhais, à Vila e ao seu Posto de Turismo, em busca das últimas edições da Câmara Municipal e de outras publicações sobre a região. Em todo o concelho de Vinhais não existe uma única livraria e, por isso, apenas neste Posto de Turismo ou no Centro Cultural é possível, ainda que à míngua, encontrar algo...
Entrei no Posto de Turismo, por volta das 15 horas, vazio e apenas as duas funcionárias, caras que de longe recordo e reconheço, que com simpatia e atenção me atendem. Digo-lhes ao que vou e sou logo direccionado por uma delas para as estantes onde se encontro todos os livros disponíveis. Aí chegados, essa mesma funcionária, sem aviso prévio ou sem que eu estivesse à espera, pergunta-me: - Então como está a correr o seu podcast? Surpreso e sem saber como lhe responder, agradeci e disse-lhe que sim, estava a correr bem. Mas também reconheci a surpresa da abordagem, pois na verdade não faço a mais mínima ideia do alcance e abrangência desta minha iniciativa.
Escolhi os livros que quis, paguei e despedi-me, agradecendo as suas atenções. Na volta, a mesma funcionária ainda me disse: - Boa sorte para o seu podcast.

25 agosto 2025

recorrência: livros e espaço

"Comprei uma data de livros do Torga, que é um tipo que eu, antigamente, não almoçava para comprar e mandei o Paulocas* ler todos. Nem sequer os abriu. No quarto já não tenho espaço. Não posso ter uma biblioteca no guarda-fato ou numa daquelas arcas ou baús que levam muita coisa, como a do Pessoa. Ou se tem uma biblioteca, em estantes, lombadas bem visíveis ou não se tem. Assim, metidos na arca é uma maçada. Às vezes quero um livro para consultar qualquer coisa e está sempre no fundo da arca, de maneira que quando encontro o raio do livro, já estou tão chateado que já não quero ver nada [...]. A minha biblioteca muda todos os dias: todos os dias vendo, todos os dias compro. Vendo Camilo, compro coboiada. Vocês pensam que leio tudo, que vou a todo o lado? É falso! Não faço vida de Lisboa. Hiberno, faço como o morcego. No Verão, nestes dois meses, vou até à Caparica apanhar um bocado de ar, escrevo um bocado à máquina, porque tenho a janela aberta e não vem frio da rua. Como posso escrever à máquina a abanar-me, a aquecer-me? [...] No Verão passado, cheguei a ter de dia e de noite a ventoinha ligada, a um metro do meu nariz." Luiz Pacheco, "O Uivo do Coiote" (1996)
In "O Prato do Diabo - um Dicionário Pachecal", org. João Pedro George, Língua Morta, 2025, página 45 e 46.

* Paulocas é um dos oito filhos de Luiz Pacheco.

anacronismos

Um destes dias participei, como convidado, numa boda peculiar. A sensação foi ter viajado no tempo e ter regressado a um pretérito conhecido. Num pequeno povo da Sanábria, fim de tarde, encontro marcado na casa da família. Grupo de vinte a trinta convidados, caminhámos com os noivos até pequena capela num ermo afastado da povoação, onde nos aguardava à porta o sacerdote. Cerimónia religiosa simples e rápida. Descontraídos e depois de esperarmos que o padre fechasse a capela e nos acompanhasse, regressámos à mesma casa... durante este percurso, os noivos que seguiam na frente foram brindados e felicitados pelos habitantes daquela pequena localidade. O copo de água foi servido na rua, numa espécie de cortinha abrigada, anexa à casa. Ementa farta e variada, confeccionada por mãos amigas. Ambiente tranquilo, acolhedor e muito bem disposto, acompanhado por momentos musicais que alguns dos convivas foram protagonizando e que se estenderam pela noite dentro. Vim de lá, altas horas da noite, feliz e com a sensação de ter vivenciado um momento único, replecto de anacronismos difíceis de encontrar em pleno século XXI.

08 agosto 2025

preparativos

É sempre com alguma ansiedade e considerável expectativa que organizo a minha "tralha" e me preparo para sair de casa durante períodos longos, como acontece quase sempre no mês de Agosto. Pelo menos três semanas sem vir a casa é tempo considerável e, por isso, tenho sempre que me precaver para não vir a sentir falta de alguma coisa importante. Entre praia e campo ou montanha, as próximas semanas servirão, espero eu, para apenas viver e, sem qualquer constrangimento, fazer aquilo que bem me apetecer. Os bens essenciais estão já acondicionados e a selecção de leituras que pretendo realizar está quase fechada. Nas imagens, aquilo que vou levar comigo para ler, faltando um ou outro item que irei ainda adquirir, aproveitando um pedido da minha filha: "- Pai, preciso que vás à FNAC comprar-me três livros..." Claro, como bom pai que sou, irei com todo o gosto e aproveitarei para saciar também lacunas de última hora. Enfim, resta dizer que a ansiedade e expectativa que inicialmente referi resultarão, com grande probabilidade, em relativa frustração, mas não faz mal. Boas férias.


03 agosto 2025

acontece

"Há um ritual airaniano de escrita?
Não diria que se trata de um ritual. Em todo o caso, é um ritual negativo, que consiste numa resistência quase invencível a começar a escrever todos os dias. Não sou só eu, porque ouvi Manuel Puig dizer que, ao sentar-se à secretária, com a obrigação vocacional e profissional de escrever, começava a organizar papéis, consultar a agenda, afiar o lápis, qualquer tarefa inventada para adiar o momento de escrever. Acontece ao outros, a mim também, mas pior. Posso passar o dia inteiro a hesitar. Depois, uma vez ultrapassado o limiar, tudo é fácil. O difícil foi antes, no vazio. Não é fácil compreender, já que escrever é o que mais gosto no mundo. [...] O curioso é que essa resistência é tanto mais forte quanto mais claro tenho o que quero escrever, quando sei o que vou pôr e as frases já estão a formar-se na minha cabeça... Nesses casos, torna-se mais difícil do que nunca começar, sinto-me inútil, a escrita material torna-se redundante porque o mental é igualmente real. [...]
Quanto aos cafés... têm uma função nessas neuroses divertidas. Se vou a um, com o meu caderno e a caneta, inevitavelmente faço alguma coisa. E eles servem mais do que o isolamento e o hábito. [...] A minha biografia como escritor poderia ser resumida num lento e seguro processo de correcções. Quando era jovem, aparentemente tinha total confiança no meu talento, escrevia depressa e deixava tudo como estava. Depois comecei a duvidar, a corrigir e a corrigir novamente o que tinha corrigido. Agora passei para um estágio superior, já não me basta corrigir: reescrevo. [...]
A leitura tem sido a minha actividade mais constante. Poderia ter sio a única, se eu nunca tivesse resistido ao prazer de escrever. [...] São esse tipo de escritores que, quando os leio, sinto que estou a escrever."

César Aira, escritor argentino, em entrevista a Isabel Lucas, in Ipsilon, Jornal Público, 1 Agosto 2025.

31 julho 2025

autêntico inferno


Vivo nesta casa há quase vinte anos e em cada Verão o desespero é o mesmo, calor, muito calor. Vivo num segundo e último andar de um prédio com apenas seis habitações, sem varandas e com uma exposição solar tremenda. Acresce que, por ser o último andar, temos por cima uma cobertura de telas, alcatrão e cascalho que acumula calor durante todo o dia e o liberta durante toda a noite. Vivo, nos meses de Verão, numa autêntica sauna, com temperaturas médias diárias de cerca de 29 graus (na fotografia a temperatura neste momento, às 11:20 horas...), onde até o chão está quente e nem sequer posso abrir janelas e levantar persianas. O pior é que não consigo encontrar antídotos para este inferno que, lentamente, nos vai cozendo o cérebro e as células. Não sei o que fazer, apenas sair daqui e viver num local fresco e à sombra.

29 julho 2025

modas e resistências

É crescente o número de pessoas à minha volta que, ao trocarem de automóvel, têm optado por comprar veículos eléctricos. Numa tendência generalizada e até célere, temos vindo a assistir à substituição da combustão a energias fósseis por energias ditas menos poluentes e menos agressivas para o planeta (greenwashing?). Eu nada tenho contra, apoio essa alteração de paradigma e gostaria de poder contribuir mais para ela, mas no que diz respeito aos automóveis, e pelo que tenho percebido das experiências daqueles que me rodeiam, a coisa não é bem como a pintam, o que só vem reforçar a minha percepção de que esta nova tecnologia (electrificação) não será a definitiva. Vários sintomas contribuem para esta percepção:
- É uma tecnologia cara, muito cara, o que impede a sua socialização, massificação ou democratização;
- As autonomias são uma anedota, impedindo viagens que ultrapassem os limites das grandes cidades;
- Veículos com autonomias interessantes são, de caros, inacessíveis;
- Na estrada permanente e obsessiva atenção com o consumo a cada momento (hi-fi, bluetooth, música, telefone, ar condicionado, velocidade, etc., etc., condicionam fortemente a duração das baterias;
- Rede de abastecimento pública inexistente em parte do território do país e muito reduzida em muitas zonas urbanas, o que significará ausência de investimento (certeza e projecto) nesta tecnologia;
- Durabilidade das baterias eléctricas - prazos de validade (garantia) curtos, obrigando a cada 6, 7, 8 anos, nalguns casos nem tanto, à sua substituição, significando um investimento acrescido (quase o preço de um automóvel), ou então à troca de automóvel com essa periodicidade;
- Muitas marcas de fabricantes automóveis estão já a rever a sua estratégia de produção e comercialização, e algumas marcas que tinham apostado tudo ou quase na electrificação, estão a regressar à produção de motores a combustão;
Curiosa é também a atitude de muitos daqueles que fizeram esta escolha e que apesar de terem alterado substancialmente o seu comportamento (planeamento, duração, disponibilidade, paciência), não reconhecem as fragilidades desta tecnologia e, antes, adaptam o seu discurso às exigências da própria tecnologia, ou seja, reorganizam a sua vida em função das necessidades do seu automóvel. São poucos, mas conheço quem tenha feito esta opção e, rapidamente, se tenha apercebido do passo em falso e da pouca aplicabilidade e razoabilidade desta opção, tendo regressado, ainda que com perdas significativas de dinheiro, aos motores a combustão.
Portanto, e sem querer ser um velho do Restelo, não estou disponível para esta nova realidade. Não faz ainda sentido para mim. A não ser que seja imposta ou evolua significativamente, irei aguardar e, no entretanto, se tiver que trocar de veículo, algo que mais cedo que tarde vai acontecer, irei permanecer no diesel ou na gasolina.

remanso e leituras

Nesta altura aproveito sempre para organizar o meu acervo pessoal (poderia já chamar-lhe biblioteca, mas não quero parecer, ou ser, pretensioso). Já desde o mês de Abril que os livros chegavam e ficavam numa pilha à espera de serem "incluídos" e, por isso, nestes dias tenho estado a tratar disso. O primeiro passo é sempre digitalizar as capas de cada livro e é nesse momento que consigo saber o número de livros que estão à porta, sem entrar... desta vez são cerca de sessenta espécimes, entre Saramagos, Chimamandas, muita Galiza, mais um de Luíz Pacheco e antropologias várias... Mas é também nestes momentos em que volto a olhar, com atenção, para cada um deles, que me apercebo da quantidade crescente de livros que tenho para ler e nem as próximas semanas de remanso permitirão alterar essa situação.

aqui estou

Agora que o ritmo diminui e as obrigações ou compromissos vão desaparecendo da agenda e são substituídos por longos espaços em branco, facto este que tem duas leituras possíveis: a primeira é que estão aí as férias e vão-se ausentando os contactos e a convivência; e a segunda é que estou a entrar naquele período, cíclico, em que perco o chão e fico como que perdido, sem saber muito bem como me comportar ou agir. A ideia de férias é sempre agradável, mas sinto-as como um desconforto e com estúpida ansiedade por regressar ao "tempo normal", aquele em que tenho prazos, compromissos aqui e ali e, não consigo explicar de outra forma, os ponteiros do relógio retomam a sua cadência normal.
Agora, aqui, sentado numa esplanada à beira mar, enquanto o meu adolescente brinca e se diverte com um primo na praia, reflicto sobre tudo isto e, sem conseguir chegar a uma conclusão ou definição da anormalidade que a minha atitude é ou representa, sei, com toda a certeza, que gosto de sombra, de vento, de frescura e de estar à beira mar, tanto de Verão como de Inverno, mas ao mesmo tempo não me sai da cabeça tudo aquilo que tenho e quero ler, tudo o que tenho e quero escrever. Sem o estar a fazer, aqui estou.

23 julho 2025

ao espelho

agradecendo à Cristina...



Apresentação Livro,
IX Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia
Viana do Castelo, 16 de Julho de 2025

por Cristina Sá Valentim


Neste livro, o Luís realiza uma etnografia dos processos de nomeação coletiva que têm lugar no nordeste de Portugal, em Trás-os-Montes. Estes processos referem-se a nomes atribuídos a pessoas e que localmente são reconhecidos, de forma consensual ou não, pela comunidade que os atribuiu ou recebeu. Por exemplo, as alcunhas são a tipologia mais conhecida de nomeadas coletivas.
Apesar de serem processos não específicos do território transmontano, adquirem nesta região, segundo o autor, a dimensão de um “particularismo cultural”, ou seja, e cito, “uma manifestação que apesar de não ser exclusiva da região, adquire aí contornos específicos e diferenciadores.” Foi partindo desta hipótese que o Luís fez um levantamento exaustivo e uma reflexão cuidada sobre as tipologias mais representativas das nomeadas coletivas, averiguando onde e como se desenvolvem, e quem as mobiliza e para quê. Recorre à antropologia cultural e social para entender a complexidade dos processos de identidade, de nomeação e de alteridade, como também aos estudos de memória e aos estudos críticos do património.
O Luís partiu para o terreno para tentar responder a várias questões que elenca na página 17 do seu livro. São mesmo muitas questões, e eu vou sintetizar a questão central que o livro me coloca. E que é:
Até que ponto a atribuição de nomeadas coletivas pode ser um ato diferenciador, isto é, uma prática que, inserida em relações de poder desiguais, cria fronteiras para incluir e excluir indivíduos de fazer parte de um coletivo, e assim regula sociabilidades e sociedades. Ao mesmo tempo, de que formas a atribuição e manutenção de nomes coletivos implica a produção de discursos de identidade e de conhecimento distintivos de uma comunidade, e que são transmitidos pela oralidade ao longo de gerações. Por fim, como essa prática social integra processos de memorização coletiva de um património cultural em constante resignificação e reconfiguração.
O Luís mapeia, descreve, interpreta e problematiza tudo isto com muita competência, generosidade e criatividade, como deve ser em Antropologia.
Depois de introduzir o leitor na temática das nomeadas coletivas, o Luís apresenta o enquadramento teórico que mobiliza para a sua reflexão, apresentando alguns conceitos que foram úteis para entender as nomeadas coletivas, entre os quais Cultura, Património, Nomes (ou o processo da Nomeação), a Memória, a Metáfora e a Metonímia, e a Tradução Cultural.
A seguir, através de uma descrição e interpretação etnográfica, ficamos a conhecer os processos de atribuição de nomes a terras, a pessoas, a grupos, a lugares, a pessoas naturais de certas localidades – por exemplo, não sabia que “os de Mirandela” são chamados de “repolhos”; mas sei que os de Mirandela chamam “peleiros” aos de Carção e “narros” aos de Bragança. Também há nomes atribuídos a animais domésticos e de trabalho, e até a objetos e a dias da semana, do mês e do ano.
O livro do Luís diz-nos que nada disto é aleatório. Como o Luís argumenta, tudo isto tem um sentido porque não é mais do que a manifestação da dimensão relacional e processual, e não essencialista, que define as identidades pessoais, coletivas, culturais e sociais. Isto é, as nomeadas coletivas fazem parte do processo da individuação que nos forma enquanto pessoas situadas no mundo. É o que o psicólogo e filósofo norte-americado George Herbert Mead (1934) nos lembra desde a década de 30 através dos seus trabalhos sobre o comportamento social: que as pessoas vão criando e validando o sentido de si (o self) através da interação com “outros significativos” e com o “outro generalizado”, no sentido da sociedade onde estão inseridos. Como também os sujeitos vão definindo as suas pertenças identitárias a grupos através da criação de fronteiras simbólicas mediante lógicas de recriação e manutenção de identidades sociais, vistas por oposição e em dualismos de puro/impuro, limpo/sujo, ordem/desordem, de modo a recriarem o seu lugar no mundo. Ou seja, eu diria que as nomeadas coletivas são uma prática política.

"ninguém nasceu para ser servil e morrer"

Num destes dias e nas voltas pelas estradas e ruas da urbe, enquanto levava ou trazia alguém, ouvia na Antena 3 a inconfundível voz de Anibal Luxúria Canibal, dos Mão Morta, a cantar repetidamente o refrão de uma das suas mais recentes canções - "Viva La Muerte", com uma tal intensidade e cadência que fiquei eu próprio a cantá-la e, depois, a reflectir sobre o seu alcance e relevância. Sem querer aprofundar ou complexificar muito a questão, não posso deixar de afirmar aqui a minha visceral concordância com essa afirmação cantada em forma de slogan dos direitos humanos. A afirmação simples, é uma ontologia da nossa condição. De facto, há muito que a humanidade foi convencida que o trabalho, que trabalhar a soldo, dignifica a condição humana e que não cumpriremos o nosso devir se assim não nos comportarmos e existirmos, ainda que detestemos aquilo que nos couber. Uma falácia absoluta mas plenamente (universalmente) conseguida, pois vivemos acreditando que ser "servil" é um desígnio ou mesmo um determinismo para a nossa existência. Tenho certo que o trabalho, tal como o capitalismo o transformou e re-significou, não dignifica nada nem ninguém. Dignidade será sempre o respeito pela vida de cada um, sem humilhação, sem exploração e sem liberdade, que é, precisamente, aquilo que o trabalho a soldo foi, é e será.

21 julho 2025

agora sim, o fim

Afinal, saiu mais um número do Jornal de Letras (nº 1429), atrasado e, este sim, mais do que certo, o último. Partilho aqui parte do editorial de José Carlos de Vasconcelos, seu director desde o primeiro número, onde, mesmo não querendo, admite o seu fim e as razões que o trouxeram até aqui.

ler da, ainda, Primavera


Ainda que já na esta estação seguinte, saiu a LER. Irá comigo de férias em Agosto e far-me-á companhia nas sombras possíveis.

17 julho 2025

jornal de letras

Era sabida a dificuldade em que a publicação sobrevivia, mas ainda assim manteve a sua periodicidade sem interrupções. Foram vários os avisos do seu director e de alguns dos seus colaboradores de que o fim estaria próximo. Pois bem, pelos vistos confirma-se, o Jornal de Letras acabou. Há muitos anos que comprava, lia e guardava as edições todas e foi com pena que, ao ir procurar a nova edição (a nº 1429, a partir de 9 de Julho), me foi dito que já não iria sair. Foi, durante muito tempo, o único jornal em papel que eu comprei. Lamento muito, até porque o vazio que deixa não será facilmente recuperado.


(capa do último número nas bancas...)

10 julho 2025

sempre mais escola

Não poderia estar mais de acordo com a afirmação que titula estas palavras. É de uma clareza e firmeza programática que só a posso subscrever, enaltecer, agradecer e ambicionar. Esta afirmação é título de uma crónica de Valter Hugo Mãe no Jornal de Letras e porque é um texto bonito, sentido, mas também responsável e ideológico, não resisto a partilhar os sublinhados que nele fiz...

"A pergunta de saber o que fazer à escola devia ser colocada a todas as pessoas e respondida como se responde à própria vida. Cuidar da escola é cuidar de sermos ainda humanos. [...] Levamos décadas de governos que perigam a imagem do professor. [...] O que me incomoda é o inquinado de se atacar a classe educadora para se criar nas famílias a convicção de que apenas pagando a especulação poderão potenciaríamos nos filhos um futuro capaz. Incomoda-me que se especule com a mais elementar máquina de justiça da sociedade que é a formação intelectual e ética de cada pessoa. Não entender que toda e qualquer vulnerabilização dos professores é um boicote ao futuro dos alunos é ser-se de uma planura de ideias insuportável. O desprestígio da classe dos professores acarreta a desgraça das crianças e dos jovens. [...] São os alunos que deitamos a perder se destruirmos a docência e a solenidade da docência. [...] Não pode haver lógica na predação aos professores, senão a de criar massas humanas sem noção crítica e facilmente manipuláveis. Sem livros não há resistência à tirania. A falta de conhecimento é o dado fundamental da fragilidade social. [...] Povos fortes e longevos são povos de cultura, memória, conhecimento, sabedoria. [...] Não creio que um génio dê no Mundo sem uma nutrição profunda. Sem mestres e seriedade. [...] A escola prestigiada é o mesmo que uma sociedade prestigiada, é o mesmo que a decência. A verdadeira decência com quem somos e com quem virá a ser."
(Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1428, Junho 2025)

violação de privacidade

Depois de vários meses a adiar o momento, hoje foi dia de ir à procura de óculos e lentes novas. Depois de visitar uma outra óptica, entrei numa outra localizada no centro da cidade do Porto. Tirei senha e, depois de cerca de 10 minutos à espera, ouço chamarem pelo número da minha senha. Sou convidado a sentar-me, explico o que preciso, mostro a prescrição do oftalmologista e a menina, simpática, começa a trazer-me armações para experimentar e escolher. Terei experimentado dez a doze armações e, no fim, fiquei com quatro para escolher entre elas, mas logo referi que iria esperar pela chegada da minha mulher para saber da opinião dela.
Pois bem, quando chegou, comecei a colocar no rosto cada uma dessas quatro armações e, para meu espanto e até espanto da minha mulher, logo uma mulher que estava a ser atendida num outro balcão, se aproximou e começou a opinar sobre cada uma das armações que eu ia colocando. Mas num tom e com uma acertividade que mais parecia ser ela a minha mulher. Opinou, opinou, opinou e deu o seu veredicto final, para logo depois desaparecer, não sem antes comentar... "enfim, mas você é que sabe!", como quem diz, eu, que tenho extremo bom gosto, já decidi o que deve comprar, agora você faça o que entender, mas depois não se queixe.
A sério?!... Na troca de olhares com a minha mulher, pude manifestar a minha estupefacção por aquela inusitada intromissão.

17 junho 2025

num impulso

Conheci-a há pouco tempo, talvez dois ou três anos, e logo simpatizei com ela. Mulher negra, nascida na Nigéria, feminista e activista, bonita e bem falante, assim é Chimamanda Ngozi Adichie. Pouco ou nada li dela, a não ser uma ou outra entrevista, um ou outro texto e uma conferência TED que não só me prendeu os sentidos, como a passei a partilhar com os meus alunos. Um destes dias, e num impulso mais emotivo do que racional, comprei todos os seus livros disponíveis nas livrarias por onde passei. Agora, o mais difícil, encontrar tempo e espaço para ler tudo isto...

16 junho 2025

depois de Auschwitz, Gaza

Encontrei no suplemento Ípsilon, do jornal Público, da passada sexta-feira, dia 13 de Junho, esta opinião sobre a questão de Gaza. Eu que sou um leigo, mas que abomino o Estado Sionista, encontrei aqui uma opinião esclarecida, eloquente e bem fundamentada. Leiam, se fazem o favor.

05 junho 2025

eufemismo de estado

Leio na imprensa de hoje que Luís Montenegro, recém-eleito Primeiro Ministro, apresentou ontem o novo elenco governativo e, num ambiente de monótona continuidade, uma das principais novidades foi a criação de um ministério para a "reforma do Estado". Muito eu gostava de saber que reforma será essa, mas solenemente desconfio que tudo não passa de um eufemismo, que resulta ou é consequência directa da falta de coragem, leia-se cobardia, do Primeiro Ministro e da coligação que o suporta, para utilizarem o termo "privatização". Isto porque qualquer referência à palavra reforma, para os partidos de direita, só é entendida como uma metonímia, essa figura de estilo em que se utiliza uma determinada palavra em vez de uma outra, aquela que verdadeiramente querem significar. Aguardemos e veremos.

pai presente

Eu não sei o que a História dirá de mim, provavelmente nada. Nem sei se estou interessado nisso, ou se isso é realmente importante. O mais que certo será um desaparecimento anónimo e um completo esquecimento com o passar do tempo, tal como acontece à grande esmagadora maioria dos seres humanos, isto é, só haverá memória enquanto aqueles que nos conheceram não desaparecerem também.
Dito isto, e porque foi motivo de introspecção recente, tenho para mim que tenho sido um pai presente na vida dos meus filhos e tenciono continuar a sê-lo. Se mais não for, eles irão guardar de mim essa memória e, isso sim, é, em consciência, superlativo.
(escrito a 29 de Maio de 2025)

04 junho 2025

eu vou lá estar...

29 maio 2025

direito a vaguear

Encontrei esta ideia na "Poucaterra", revista dedicada ao acesso à terra, agroecologia e convivialidade, e que me chamou a atenção numa das últimas visitas à livraria Gato Vadio, na cidade do Porto. De facto, e tal como acontece em países nórdicos, a ideia de consagrarmos na lei o direito a podermos caminhar por todo o lado, seria uma alegre e feliz concretização para a liberdade, o bem-estar e o equilíbrio entre os seres humanos e o território, enquanto casa mãe que nos abriga a todos. Esse direito a podermos caminhar por todo o território, seja em montanha, floresta, monte, planície ou praia, exceptuando terrenos cultivados, traria consigo outras responsabilidades cidadãs, tais como o respeito pelos ecossistemas, não poluir e não estragar ou destruir a biodiversidade existente. Eu participaria activamente nesse esforço de regulamentação legislativa deste direito e votaria em quem o propusesse e defendesse.

27 maio 2025

irritação

Se há coisa que me irrita é a indiferença a que sou, a espaços, votado por quem tem por "obrigação" atender-me em cafés, bares ou esplanadas. Sentar-me e perceber que poucas mesas estão ocupadas, mas que os empregados estão muito atarefados a fazer não sei o quê; entretanto, perceber que à minha volta as mesas vão sendo ocupadas e logo depois, diligentemente, atendidas pelos mesmos empregados, enquanto eu continuo sem merecer essa diligência... é como se não estivesse ali. E o pior é que neste mesmo estabelecimento já não é a primeira, nem sequer a décima vez. Quando assim acontece, como hoje, tenho saído sem dizer nada. Não sei se será hoje, mas um dia destes, hei-de reclamar junto de alguém da gerência. Não é por nada, apenas irritação.

eu vou lá estar...

crescendo

Quando completo cinquenta e dois anos de vida, importa-me dizer que me sinto bem. Não conseguindo, nem querendo, escapar ao inevitável processo de envelhecimento biológico, a percepção é de que continuo a crescer. Sem mazelas físicas ou psicológicas, sem dores na estrutura (finalmente, a reumatologista acertou numa droga eficaz), com uma agenda recheada de desafios e tarefas que me aprazem. Sou um privilegiado, de bem com a vida.


(bilhete que recebi dos meus pais. Todos os anos, nesta data, me entregam ou enviam palavras de celebração e todos os anos eu as guardo. Tenho uma colecção delas que guardarei para sempre)

23 maio 2025

a luta continua

13 maio 2025

camionista, eu?

Se me querem ver tranquilo e satisfeito, ponham-me ao volante de um veículo que eu irei até ao fim do mundo. Não há viagem longa que me desagrade. O enorme prazer que é, ainda hoje, fazer-me à estrada e percorrer quilómetros e mais quilómetros, leva-me à seguinte ponderação: terei eu passado ao lado de uma brilhante e feliz vida de camionista?

09 maio 2025

indiferença e ausência

Estamos a meio do período de campanha eleitoral das eleições legislativas, que vão acontecer no próximo dia 18 de Maio e eu permaneço alheado de tudo, ou quase tudo, quanto se vai passando e não pretendo alterar essa condição de ignorância face ao desenvolvimento desta "corrida" politico-partidária. Claro que irei votar e não me resta qualquer dúvida ou hesitação sobre onde colocar a minha cruz, sendo que a única certeza que posso aqui partilhar é de que não irei votar, uma vez mais, na lista do ainda meu partido (BE). As razões para esta certeza são evidências e factos que em consciência não posso negligenciar ou omitir e, portanto, alguns dos nomes indicados não são dignos da minha confiança política, nem dignos de uma ética pessoal, humana e política que eu preconizo e defendo.
Por outro lado, aproveitando esta oportunidade e porque a talhe de foice, até para não voltar ao mesmo assunto mais tarde, importa-me partilhar a confirmação da percepção que tenho de que não temos um único líder partidário com qualidade. Os partidos são muito pouco exigentes e em todo o espectro partidário é sofrível o perfil e a qualidade dos seus líderes. Teremos o que merecemos.

05 maio 2025

ir aos livros

"Nunca foi tão fácil fugir da manada. Nunca foi tão fácil ser jovem. Basta abrir um livro. Basta entrar numa biblioteca. Basta habituarmo-nos à emoção e ao prazer de procurar e de encontrar. Por enquanto, a Internet é apenas um meio de transporte. Confiar nela é como confiar no que trazem os correios. Trazem muita coisa gira, mas são um acrescento. Não são um substituto. Continua a ser preciso ir aos livros."
Miguel Esteves Cardoso, in jornal Público, 2 Maio 2025.

"território, agressões e resistências"


Aconteceu no Sábado, dia 3 de Maio, em Vinhais e no Auditório do Centro Cultural do Solar dos Condes de Vinhais, a primeira jornada cidadã, organizada pelas associações locais, Uivo, Palombar e Tarabelo. A ideia surgiu no início do ano, em Lisboa, aquando da participação na V Conferência Bienal Internacional de Antropologia do Ambiente. Desafiado(s) pusemos mãos à obra e tratámos de encontrar os protagonistas para a sua concretização. Por pretendermos que este evento se realizasse o mais breve possível, construímos uma comissão organizadora com representantes de cada uma destas associações. Foi, por isso, um processo rápido e que se pretendia ágil. Conseguimos estabelecer 3 de Maio como a data de realização do evento e, portanto, tivemos pouco mais de dois meses para preparar tudo, desde o programa, convidar oradores, comunicação, parceiros, imagem e toda a logística. Importa referir que não tivemos qualquer apoio financeiro. A expectativa era alta, mas ao mesmo tempo, alguma incerteza existia quanto à receptividade das pessoas e, consequentemente, quanto ao sucesso da iniciativa.
Chegado o dia, desde cedo se percebeu que a nossa mensagem tinha chegado a muita gente, pois inscreveram-se perto de oitenta pessoas, não só da região, como de outras regiões e do país vizinho. Depressa o magnífico espaço do solar ficou bem composto com a moldura humana que se interessa e está preocupada com aquilo que nos propusemos debater e partilhar.
Algumas notas que considero relevantes sobre o evento:
- todos os oradores convidados compareceram;
- os painéis e suas comunicações motivaram a plateia a intervir e participar;
- o tempo de cada painel foi curto para as intervenções pretendidas;
- as "forças vivas" da região fizeram-se representar e, algumas, quiseram associar-se ao evento;
- curiosidade, os candidatos autárquicos desta próxima eleição, ainda em 2025, inscreveram-se e participaram nas jornadas;
- fomos felicitados, não só pela iniciativa, como pela qualidade da estrutura do programa e das comunicações realizadas;
Em jeito de balanço, agora que já algum tempo passou, eu diria que esta iniciativa foi um tremendo sucesso, não só pelo número de pessoas que participaram, como pela qualidade e pertinência dos temas abordados, como ainda pela representatividade dos problemas que os territórios têm enfrentado e que se traduzem na quantidade e variedade de manifestações, oposições e protestos dos cidadãos e organizações.
No imediato, a minha intenção será conseguir produzir os vídeos do evento para que possam ser partilhados por todos nas redes sociais e, depois, reunir todas as intervenções para tentar construir e editar umas actas das jornadas. Para além disto, considero que face ao sucesso do evento, teremos todas as condições para voltar a pensar num evento do género, claro que com mais tempo de preparação, com outro orçamento e com a colaboração de mais parceiros e com mais apoios institucionais.

[ comissão organizadora: Luis Vale, Sara Freire, Daniel Vale, Sílvia Vale, Ricardo Vale, Sara Riso ]

29 abril 2025

soberania energética

Tal como a esmagadora maioria dos meu concidadãos, fui surpreendido pelo apagão de ontem. Estava em casa e, no imediato, não relevei a situação e só quando comecei a interagir com familiares e amigos, que se encontravam noutras geografias do país, percebi a dimensão da coisa. Pessoal e até familiarmente, este inesperado acontecimento não foi problemático, nem causou grande perturbação nas rotinas quotidianas, a não ser o lanche improvisado, por impossibilidade de aquecer ou confeccionar a refeição da noite.
Mas atento e consciente da dimensão do problema, a reflexão que me importa sobre o sucedido tem duas dimensões. A primeira, de cariz ontogénico, recorda-nos a condição vulnerável e totalmente dependente da energia eléctrica de cada um de nós, das comunidades e das organizações, sem termos plena consciência disso e pensando que, por defeito, ela faz parte da nossa existência. Só que não faz. A sociedade actual vive, literalmente, agarrada e dependente dessa fonte de energia e só nos momentos de ressaca, como o de ontem, porque surpresos, é que, algumas consciências se aperceberam dessa condição.
A segunda dimensão, diz respeito à noção de comunidade e à do próprio Estado, na medida em que o apagão de ontem foi consequência de uma situação que nós não controlámos, nem decidimos. O facto de estarmos conectados internacionalmente com outras redes eléctricas é um facto positivo, mas isso não deveria significar a nossa demissão na produção e distribuição de energia. Por outras palavras, o sucedido ontem foi uma amostra e demonstração daquilo que poderá um dia acontecer (distopia, ou não), pois o Estado português optou por encerrar algumas das centrais produtoras de energia e trocá-las pela importação de energia porque "mais barata", ao mesmo tempo que privatizou empresas do sector - EDP e REN, perdendo assim a soberania nacional neste sector.

18 abril 2025

bolo de bolacha

"...É a mais sublime sobremesa da doçaria nacional. Não o digo de ânimo leve. [...] Que se evapora das ementas à medida que o preço do cardápio aumenta, desaparecendo por completo nos restaurantes dos grandes chefs. Um bom bolo de bolacha não se deita em cama de coisa nenhuma, nenhum rio verde percorre o seu topo, nem é susceptível a desconstruções. Não se faz acompanhar de nada nem ninguém, assobiando solitária e alegremente pelos caminhos. Um bom bolo de bolacha é, aliás, indistinguível de um bolo de bolacha medíocre. Ergue-se muito quieto e direito na sua torre Mariana até que salta de uma base de papel rendilhado para o prato de sobremesa e caminha despreocupada e humildemente para nós, que o recebemos como a um velho conhecido, sem o contemplarmos, sem o comentarmos, sem o fotografarmos, sem pensarmos na sorte que temos por o frágil ecossistema de que a sua sobrevivência depende não ter ainda derretido. Comemo-lo como se nunca o fôssemos perder e, quando ainda vamos a meio da ingestão, fazemos, saciados, um gesto inefável na direcção do empregado de mesa a pedir o café, a conta ou o aguardente. Não mais pensamos nele até à próxima vez em que uma saudade estranha o convocar de novo à nossa presença."
João Pedro Vala, in revista LER (Inverno 2024/2025: pág. 100).

16 abril 2025

a quem possa interessar...


Eu vou lá estar. Apareçam.

ainda sobre os livros...

"Mas os livros não são objectos decorativos: é preciso tirá-los e abri-los sempre que nos apetece, e poder devolvê-los com facilidade ao lugar onde estavam. Daí que a coisa mais importante para um livro seja o acesso."
Miguel Esteves Cardoso, in jornal Público, 16 Abril 2025.

15 abril 2025

eu ainda acredito

Hoje, no início da tarde, resolvi actualizar o meu registo do acervo de livros que se vão acumulando cá por casa e relembrei este texto magnífico, sensível e lindo, considero eu, de Herberto Helder, republicado agora, na última edição do Jornal de Letras (nº 1422, Abril de 2025). Tanto neste texto com o qual eu me identifico...


03 abril 2025

Jornadas Cidadãs


A quem possa interessar. Motivados pelas recentes iniciativas extractivistas na região, vamos falar sobre "Território, Agressões e Resistências". Em breve programa detalhado.

01 abril 2025

ser transmontano

"Boa gente, estranha gente, vivendo presa aos anseios dum tempo que passou. Pertenço-lhe, nela me revejo, incapaz de distinguir entre a bênção e o castigo, apenas certo de que ser transmontano, tanto como uma origem é um destino."
José Rentes de Carvalho, in Tempo Contado, 18 Março 2025
(ligação para texto completo aqui)

quarto episódio do podcast

28 março 2025

entrudo

Há mais de uma década que não ia ao entrudo de Vila Boa. Recordo-o com nostalgia dos tempos de meninice e juventude, no qual participava e colaborava activamente na sua preparação. O entrudo na minha aldeia era um momento único de reunião e folia em comunidade. Um tempo de excepção e de tolerância para com os excessos, com momentos e tempos próprios e diferenciados, protagonizados pelos locais e para o público local, ou seja, para a própria comunidade.
Regressei este ano e o contraste com esse entrudo recordado não poderia ser maior. Aquilo que hoje acontece, e pelos vistos já acontece há muitos anos, nada tem de parecido com esse entrudo da minha juventude. Agora, trata-se acima de tudo de uma performance que os locais e não só dão a quem visita a aldeia nesse dia. Centenas ou mais de milhar de pessoas invadem a aldeia e percorrem-na em ronda com os referidos actores, máscaras, marafonas e madamas, povo abaixo, povo acima. São inúmeras as diferenças que não poderei aqui referi-las a todas, mas o que mais me impressionou foi o batalhão de fotógrafos profissionais e amadores, jornalistas e outros especialistas que acompanharam durante todo o dia os diferentes momentos deste entrudo que se diz ainda genuíno. Eu e mais algumas pessoas sabemos que de genuíno já pouco ou nada tem, mas enfim.
Nunca fui máscara, nem nunca me fantasiei de marafona ou madama, foi com surpresa e muita alegria que vi o meu filho, com treze anos a querer mascarar-se e a chocalhar miúdas e graúdas, activa e efusivamente ao ponto de ser noite, ter que regressar ao Porto e ele não querer sair de lá... Assim ele queira, regressarei anualmente a Vila Boa para que ele possa "deitar o entrudo fora".
Partilho algumas fotografias que fui tirando com o telemóvel, pedindo desde já desculpa pela fraca qualidade das mesmas.









ecossistema dos mortos

A propósito da sociedade a que dá o nome de transparente, o filósofo José Gil escreve um artigo no número actual do Jornal de Letras, no qual alerta para os perigos dessa sociedade que se afastará da igualdade e da liberdade democráticas e criará mais desigualdades, terror e injustiças. Mas aquilo que escreve sobre os ecossistemas e, em particular, sobre a erosão do ecossistema dos mortos, foi aquilo que me fez reflectir.

"A erosão de um outro ecossistema, o ecossistema dos mortos, que há muito recebe golpes profundos, contribui para este quadro apocalíptico. Quando falamos do 'passado', raramente nos lembramos de que é feito de antepassados. Referimo-nos a ele como o 'tempo passado', 'a tradição', um bloco de tempo que 'deixamos para trás', desbotado, cada vez mais desvanecido e amortecido. Não vemos no passado um presente que já foi, com vida e pessoas que perduram agora como personagens espectrais. Muitas das casas, muros, pontes e ruas das cidades e aldeias da Europa e do Oriente têm séculos e milénios de existência. A pedra e o espaço moldados pelos antepassados dirigem os nossos passos, perspectivam o nosso olhar. Vivemos à tona do passado, no meio dos mortos e dos sinais que nos deixaram. Mas tudo isso está a acabar."
José Gil, in Jornal de Letras nº 1421, Março 2025.

obesidades

 Leio sempre com atenção e prazer este senhor...

26 março 2025

45 anos de jornal de letras

"Cada vez mais me apetece ler o que há e barafustar contra o estado do mundo, de suas opções assustadoras perante as quais temos de erguer mais livros e mais consciência, mais informação e mais verdade. Mais resistência. Mais convicção na denúncia do quanto nos querem arrebanhar para interesses das elites financeiras, contra a dignidade dos povos todos."
Valter Hugo Mãe, in Jornal de Letras nº 1421, Março 2025.

caminho






Nunca fui caminheiro, peregrino ou turiperegrino, nem nunca senti qualquer chamamento para essa experiência física e/ou espiritual, sensorial e de superação. Fui desafiado uma ou outra vez para o fazer, mas sempre desconfiei das minhas capacidades físicas para tal empreendimento e, por isso, fui rejeitando tal hipótese.
Pois bem, agora e com esta idade, aconteceu aquilo que jamais imaginei ser possível, tentar fazer jornadas do caminho de Santiago. Isto aconteceu, não por qualquer epifania ou chamamento, mas quase por obrigação, ou comprometimento profissional. Faço parte de uma equipa de três antropólogos que se propuseram realizar a avaliação do potencial do caminho jacobeu Zamorano-Transmontano, uma alternativa ao caminho da Via da Plata. Este trajecto que inicia em Zamora, passa por Alcanices, Bragança, Vinhais e chega a Verín por Segirei, não está certificado, nem tem grande procura daqueles que se dirigem a Santiago. Contudo, sempre foi utilizado e existe um conjunto de caracteres ou manifestações patrimoniais, materiais e intangíveis, que dão conta ou comprovam essa utilização. Este projecto, premiado pelo CEI - Centro de Estudos Ibéricos, em 2024, implica percorrer a pé esse caminho, enquanto metodologia para conhecermos o seu trajecto, os patrimónios, as comunidades, a sinaléctica, etc. Assim, no início deste mês de Março, o Xerardo Pereiro, colega e amigo, agendou percorrermos o trajecto entre Alcanices e Segirei (Chaves), em quatro etapas: 1ª (1 de Março) Alcanices-Quintanilha; 2ª (2 de Março) Quintanilha-Bragança; 3ª (3 de Março) Bragança-Vinhais; 4ª (4 de Março) Vinhais-Segirei.
Com muitas dúvidas, mas cheio de mim, apresentei-me no Albergue de Alcanices na véspera da primeira etapa. Dormimos nesse albergue e saímos cedo em direcção a Quintanilha. Devida e exageradamente equipado (mochila a mais), caminhei lado a lado com o Xerardo e sem sentir qualquer incómodo ou dor durante cerca de 15 quilómetros. Quando nos aproximávamos de Trabazos o meu joelho direito começou a queixar-se, numa impressão que rapidamente passou a dor. Parámos para descansar um pouco, comer qualquer coisa, aproveitando eu para me drogar, numa vã tentativa de conseguir prosseguir caminho. Bem, a muito custo ainda consegui percorrer mais cerca de 8 quilómetros e meio e foi quando, depois de passar a fronteira "a salto" e já avistava Quintanilha, tive que desistir e colocar-me na berma da estrada com o polegar para cima. O segundo carro que passava parou e, para espanto de ambos, era um rapaz da minha aldeia que se dirigia para Bragança e me deu boleia até Quintanilha, onde esperei pelo Xerardo.
Mal chegámos ao albergue só quis descansar. Tomei um banho quente e deite-me até à noite e à hora de ir jantar. No dia seguinte, bem cedo, acordei à hora combinada para início da segunda jornada, mas não conseguia mexer-me... todo partido. O Xerardo prosseguiu caminho sozinho e cumpriu as quatro etapas inicialmente previstas.
Enfim, gostei muito da experiência e, pelo menos, tentei e fui solidário com o colega, mas ainda hoje estou a recuperar e tenho o joelho esquerdo a queixar-se sempre que caminho mais do que meia-dúzia de metros. Não voltarei a repetir tal ousadia, não vale a pena lutar contra o meu corpo e sua degeneração.